quinta-feira, 30 de setembro de 2010

I.      

 
  Um verdadeiro enigma esse da alteração da proposta de orçamento de estado, sem que o ministro das finanças ou o primeiro-ministro a conhecessem, tudo a pretexto de facilitar a possibilidade de os partidos políticos poderem receber donativos em espécie, em vez de cheques e outros meios de pagamento escritural, que pudessem passar à margem dos bancos.
A coisa correu mal. O governo é muito tecnológico mas pouco seguro e entregou a proposta numa pen-drive, que  toda a gente sabe ser de uma total vulnerabilidade, em vez de o fazer num suporte não regravável.
Excesso de boa fé, disseram logo os apoiantes do primeiro-ministro Gustavo Lopes, que não só não querem ficar chamuscados com a polémica como até, com grande probabilidade, nada terão a ver com a marosca. Burrice, dizem uns chicos espertos, burrice associada ao mau domínio das tecnologias, dizem  os das universidades, que são, por regra mais completos e mais sabedores.
Parece que nem uns nem outros têm razão e que o enigma do orçamento é alguma coisa bem mais profunda, a ver com questões fraturantes em que ninguém tem ousado tocar. Não é por acaso que o Partido Comunista tem defendido com unhas e dentes o direito de recolher donativos em dinheiro e de não deixar controlar a sua fortuna pelos bancos, de quem perdeu o poder depois  com o fim do gonçalvismo, nos idos de setenta e cinco. Como não é por acaso que Lopes é tão perentório na intransigente posição de que os partidos só podem receber fundos por via dos sistema bancário e dos seus instrumentos, como se desejasse que os bancos os pudessem controlar e saber as suas coisas mais íntimas que, tratando-se de partidos, têm a ver com dinheiro.
Ao ler o Expresso daquela manhã, o jornalista Francisco Beirão deu um salto da cadeira, como se tivesse encontrado o código que permite a abertura de um cofre onde se encontram todos os segredos.
Ali havia gato. Alguém a querer montar um esquema do tipo do da vírgula, para permitir que os partidos pudessem voltar a receber donativos em dinheiro, concorrendo diretamente com as romarias e os diversos santuários onde isso ainda é possível, em nome de deus?  Tudo isto num momento em que, para além do mais, o dinheiro, sendo muito, como o tem que ser pela natureza das coisas, não se sabe quanto é na realidade, porque ninguém no-lo diz, e é todo necessário dentro do próprio sistema, para que ele não abra brechas, como se diz que já estava a abrir, em dois dos bancos portugueses. Era muito estranha aquela notícia. Mas mais estranho ainda era que não se soubesse quem tinha gerado essa marosca e que ninguém estivesse interessado em apurá-lo, ao ponto de, praticamente, ser considerado um sacrilégio fazer perguntas sobre tal matéria.
Não passaram trinta segundos até que, de forma verdadeiramente premonitória, o telefone tocou. Olá Francisco, lembra-se de mim? Claro que lembro (a voz era a mesma, inconfundível…). Como vai? Por onde tem andado? Olhe, por cá ando… Tenho estado na América. Ainda se lembra do meu livro? Claro que lembro; o seu livro é, por natureza, inesquecível… Mas já o publicou? Talvez agora fosse oportuno… Não, não publiquei. Nem vou publicar. Guarde-o e verá como ele se vai transformar em realidade; ou melhor: como ele já se está a transformar em realidade. Falamos num dia destes, num jantar à luz de velas. Mas desta vez sou eu quem convida.
Como se chama ela? – perguntou para si, lembrando-se daquela mulher esguia que há uns trinta anos lhe pedira que a ajudasse a encontrar um editor para a publicação de uma tese. Angelina, isso, Angelina. Deve ter agora uns quarenta e oito ou cinquenta anos, mas tem a mesma voz e a mesma energia no dizer as coisas, mesmo as coisas breves como estas,  que disse no telefone e que não duraram mais de 48 segundos.
Foi como se um fantasma lhe tivesse aparecido, a dizer, de forma decifrada, o inaudito. A profecia de Angelina apontava, há  quase trinta anos, no sentido do fim do chamado voto democrático, que, segundo as suas teses haveria de ser submerso pelo voto societário, como se um país fosse uma espécie de sociedade anónima com ações ao portador, não se sabendo nunca, em boa verdade, quem manda nele.
Angelina começou a alinhavar a sua tese quando era ainda muito nova, chegando alguns dos seus companheiros e sobretudo dos seus críticos a acusá-la de plágio de pensadores ou meros reprodutores de pensamentos, em voga nesse tempo. Há páginas que parecem ter sido escritas de Álvaro Cunhal ou retiradas de Vasco Gonçalves. Outras foram, sem dúvida alguma, influenciadas por Marx  e Lenine, eventualmente com o interface de um tal Ernest Mandel e do seu Traité d'Économie Marxiste, que, até pela ligeireza dos volumes, tipo livro de bolso,  ganhou grande popularidade nas universidades dos anos 70.
Angelina começava a sua tese com a citação de Hubert Lagardelle,  segundo o qual «a democracia parlamentar parte de uma ficção necessária: a de que todos os homens têm o mesmo valor, comparticipando dos mesmos direitos» para logo se questionar sobre a realidade.
Será que a sociedade pode (ou deve) valorizar de forma igual, em termos de protagonismo, o cidadão aforrador, o que  coloca todo o seu esforço  ao serviço da comunidade, e o gastador, o deficitário, que nada capitaliza e nada acumula para as gerações futuras? Será que a igualdade democrática pode entender-se, em termos políticos e económicos, como uma verdadeira igualdade, ou deverá ela ser uma «igualdade diferencial» ou mesmo uma «igualdade marginal» que há-de ter, justamente, o mérito de estabelecer a diferença dos  «iguais» perante os «diferentes», dos que trabalham e dos que pensam, dos que mandam e dos que são mandados?
Não havia computadores domésticos. Escrevia-se à mão e, depois, havia umas senhoras que datilografavam os textos, muitas delas eram empregadas dos CTT, dos jornais ou de empresas de comércio e indústria, algumas eram até reformadas e tinham uma maquininha em casa, comprada nuns casos em leilões de empresas falidas, entre as quais o de uma empresa chamada Messa, que produziu máquinas para todo o império e pifou pouco depois do 25 de Abril, porque o país se abriu e passou a ser possível importar azert’s e qwert’s, para substituir a lusa hcesarops. Nunca mais houve hcesarops.
Foi umas dessas senhoras, que eram uma espécie de costureiras de texto, a dona Amélia, que morava ali para os lados da Praça de Espanha, quem confecionou o estudo de Angelina, depois de terem combinado o preço de quinze tostões a folha, dando ela o papel, preço que era muito bom, pois permitiria fazer a obra por menos de um conto de reis, qualquer coisa como cinco euros, mas muito dinheiro que, como dizia do senhor Francisco, dono de um táxi na praça da Alegria, que fazia as comparações em termos de meninas, daquelas que funcionavam nas pensões de alta velocidade, contando-se, pelo seu discurso, vinte oportunidades, quando ainda não estava na moda a segunda oportunidade.
Quando leu o projeto de livro, mais de seiscentas páginas datilografadas em linguados de 25 linhas de 60 batidas, todos impecáveis e sem emendas, Francisco considerou tão grande o paradoxo que não teve a coragem de falar dele a ninguém. Porém, não o jogou fora, guardando-o, quase religiosamente, num daqueles caixotes em que se guardam coisas velhas mas  importantes.
Havia na história da tese, que tinha o título estranho de A caminho de um País S.A. alguns factos  que sempre considerou muito estranhos. Parecia uma tese tolinha, de alguém que queria dar nas vistas e que teria sido escrita apenas para isso mesmo. Foi isso que ele pensou; esta gaja quer é aparecer nos jornais, aproveitar-se do círculo das minhas relações para ser vista, numa terra onde cada vez mais é difícil a visibilidade.
A verdade era assim mesmo, nua e crua. A liberdade de imprensa começava a entrar  na sua fase mais crítica, após o 25 de Abril, com a matança dos jornalistas de opinião e a sua substituição por profissionais da opinião, vindos não se sabe de onde, mas, indiscutivelmente da confiança dos donos dos jornais e das televisões. Vais ver, dizia, Angelina; este é o primeiro indício de uma grande mudança. Ou não é verdade que tudo isto acontece depois de mais de cinquenta anos de luta pela liberdade de imprensa?
Pois, os jornalistas andaram envolvidos em guerras contra a censura e o controlo dos jornais desde os tempos da primeira república. Assistimos todos a grandes lutas pelo direito de opinião depois do 25 de Abril. E de um momento para o outro estamos nesta situação... Tu que és um jornalista, prestigiado e respeitado, não podes publicar um artigo opinando sobre isto ou sobre aquilo, porque te confiscaram o espaço, alocando-o a este, aquele e ao outro, que vêm geralmente dos partidos mas são escolhidos pelos titulares do capital, seja ele público ou privado.
A primeira conclusão que tens que extrair disto é a de que um direito fundamental dos jornalistas que é o da liberdade de expressão deixou de existir, por falta de espaço. Mas tu acreditas que é falta de espaço? Claro que não, que espaço há. O problema é um problema de poder e gerir o espaço de um jornal é gerir um pequeno sistema de poder.
  Claro que, porque há vários jornais, de diferentes cores e sensibilidades, podemos construir até uma ideia de pluralismo dizendo que este é externo e não interno às publicações. E o que é que os cidadãos têm a ver com isto? Nada, a não ser que tenham o capital suficiente para montar o seu jornal ou comprar o seu espaço. Alguém contesta isto? Parece que não. Então porque te admiras, meu amigo Francisco, desta minha convicção de que o voto político, tal como ele está formatado, vai acabar?
E de cada vez que falava disto, como se fosse uma obsessão, Angelina trazia novos elementos para a análise, muitos deles visíveis no nosso dia a dia, mas que de tanto serem vistos ninguém reparava neles.
Nunca se conseguiu apurar quem tinham sido os arguentes de Maria Angelina Rodrigues da Cunha na prova de doutoramento em ciências políticas em que foi aprovada, nem mesmo em que universidade foi feita essa prova de doutoramento, sabendo-se apenas que ela era Doutora com D grande porque isso figura do currículo, sucessivas vezes publicado no Diário da República, sempre que era nomeada para cargos tão importantes como o de representante de Portugal junto do Fundo Monetário Internacional, ou perita em políticas monetárias junto do Banco Central Europeu, ou ainda de consultora do ministro das finanças para a globalização. De outro lado, não se percebia porque razão, não sentindo Francisco Beirão o à-vontade suficiente para abordar um editor dos das suas relações, não tinha ela própria procurado outras vias para publicar a tese, não se entendendo, tampouco, porque razão nenhum editor a tivesse descoberto e, ainda menos, porque razão a temática central do estudo nunca tinha vindo a público.
Quando leu pela primeira vez a tese, Francisco Beirão considerou-a muito bem escrita mas patética, pura e simplesmente patética. Nunca o disse a ninguém, nem sequer à autora. Mas também não o comentou com ninguém. Vistas as coisas a esta distância, ele próprio acha estranho, esse seu comportamento,  até porque lhe dá um sublime gozo alimentar tertúlias com o patético das coisas.
Será que foi medo da heresia? Não, claro que não. Beirão não é pessoa que tenha medo de punição dos deuses por pecado de heresia; e no que se refere às questões políticas e sociais, sempre as encarou como objeto de livre discussão, não compreendendo ele próprio, agora, passado todo este tempo, porque razão sempre reservou os seus comentários sobre o pensamento de Angelina e porque razão, vendo-a subir em importância social, com nomeações sucessivas para cargos cada vez de maior responsabilidade, nunca se questionou sobre a evolução do seu pensamento.
Aliás, para além de Francisco e dos próprios arguentes de Angelina ninguém, que se saiba, conhecia o conteúdo da tese, como se houvesse um conluio de silêncio para a manter em segredo e a própria tivesse assumido a obrigação de guardar silêncio sobre o seu pensamento. Ao contrário do que acontece com a generalidade dos professores na mesma condição, Angelina nunca publicou um artigo nem sequer em revistas científicas, como se, de um lado, isso lhe fosse vedado e, do outro lado, ela própria tivesse assumido uma postura de silêncio relativamente ao que escreve e ao que diz em rodadas mais restritas.
Há mais de vinte e cinco anos que Angelina dizia que o  direito de voto,  esse que consideram a essência da democracia, não faz nenhum sentido e tem que acabar, substituído por um direito de voto de natureza acionista, correspondente a títulos de capital, que não de cidadania, pois que,  em seu entendimento, a verdadeira cidadania, em qualquer lógica, até numa lógica marxista, se exerce em ligação estreita do homem com o capital e não pelo simples verbo do homem pária.
Aliás, a própria lógica do um homem um voto já tinha sido posta em causa, pela própria desvalorização dos votos de alguns dos portugueses. E Angelina referia-o sempre, alegando que os votos dos portugueses residentes no estrangeiro, que são tão portugueses como os de Lisboa não valem nada em termos de representação, ao ponto de o próprio eleitorado já ter reagido a isso, não votando, como se quisesse mandar o sistema à merda. Enquanto os de Trás-os-Montes, do Alentejo ou da Beira elegem uns tantos deputados com determinado número de votos, esses que andam espalhados pelo mundo elegem muito menos com o mesmo número de votos, num sistema a que não dão qualquer credibilidade porque, em boa verdade, serve apenas para colocar no parlamento o refugo que não tem lugar nas listas do continente e das ilhas.
Este telefonema não era estranho apenas pelo facto de não se falarem há muito tempo, mais precisamente desde a apresentação do programa do governo do atual primeiro-ministro Gustavo Lopes, que já lá estava há mais de três anos. Era-o, sobretudo, pelo tom da voz de Angelina, relativamente à realização do seu sonho e à queda, que ela sabia que provocava, dos sonhos de Francisco, habituado desde menino a pensar numa república em que todos os homens são iguais, ao contrário da democracia angelina, em que todos os homens são diferentes.
Perfeita. Grande cabra. Conseguiu tocar-me  na mouche e cobrir-me de ridículo, obrigando-me a engolir tudo aquilo que lhe disse há muito tempo. Um dia vou vingar-me, tinha ela anunciado. Vais engolir, de vergonha, todos esses princípios, todas essas teorias, todas essas crenças. Lixo, só lixo, incompatível com a modernidade, como se os descobrimentos fossem uma virtude ou uma verdade e não um exercício de rapina, como todos os que justificam as guerras e a expansão. Tonton, tonton, véritable tonton...
Mordia-lhe no pescoço e tudo se ultrapassava num orgasmo  a acabar uma cavalgada em que ela se afirmava como a amazona do futuro. Nada melhor do que um orgasmo para ultrapassar as divergências, tonton. Depois fugia por semanas, até ter outro argumento, para falar sobre o mesmo tema.
Agora, meu amigo, é a sério. Está tudo em marcha. Voltei para te dizer isso mesmo, em primeira mão. Ninguém vai notar, por enquanto. Como ninguém notou o que se passou antes. Essa democracia em que tu acreditas já acabou. Como já acabou o mercado de capitais em que tu e os teus amigos acreditaram, como se ele fosse a panaceia do século XX. Tontons, são todos uns tontons.
Claro que vão continuar, por uns meses, talvez por uns anos, sem perceber o que se passou e o que se está a passar, rodeados de enigmas que ninguém vai explicar, porque anulariam completamente a graça desde exercício lúdico.
É tudo muito parecido com o romance de Haider. Claro, o durão era casado, chefe de família, xenófobo, religioso, temente a deus.  Morre num acidente e descobre-se que, para além da mulher, tinha um homem na vida dele. Ninguém acreditava antes que aquele dirigente enérgico, radical, era uma bichona. E agora toda a gente até aplaude; pois, não é só na esquerda, a direita radical também tem roturas e tonturas.
E a corrupção que tu dizias combater? Já viste onde estão todos os teus amigos? Já viste que seita de ladrões te rodeia? Até mudaste o discurso, para dizer que a corrupção se transformou num elemento de modernidade, numa espécie de pilar estruturante do estado democrático.
Pois, o que havia eu de fazer? Ia perder os meus amigos todos? Não, não há nisto nenhuma falsidade... É verdade que a corrupção  transformou num pilar estruturante do estado moderno, sim senhor. Basta ver o que temos à nossa volta; basta ter amigos que são corruptos assumidos e que acreditam que não diremos nada. Que contam como ganham o que ganham e como não ganham o que entendem que deveriam ganhar. Depois de bebermos dois uísques, tudo amansa e concluímos que os corruptos não existem e que a verdadeira distinção é outra. Os homens e as mulheres distinguem-se em dois grupos: os que têm ousadia e falta de vergonha e os que não têm ousadia e têm vergonha.
As coisas mudaram Francisco; as coisas mudaram demais. Este sistema não faz nenhum sentido e por isso morreu. A bolsa e o mercado financeiro mostram apenas uma faceta da mudança. Mas a realidade é muito outra. Vocês, todos os soixante-huitards, vocês não aprenderam nada; são umas múmias. E isso é bom... Se não fosse assim morreria muita gente e haveria muitas guerras.

Explicação

Parece-me que faz pouco sentido escrever e guardar em segredo o que se escreve.
Faz  muito mais sentido ir escrevendo e repartindo o que se escreve.
Este é o estaleiro de um livro de ficção de que já existe a ideia, sem que tenha crescido o texto.