segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mais uns excertos do meu novo livro...


Os veneráveis de todas as choças combinaram entre si encontrar-se num piquenique, num pinhal junto à ribeira da Apostiça, no caminho entre Corroios e a lagoa da Albufeira. Há ali um parque onde as família se juntam a comer, nos domingos de verão, nada impedindo que eles o ocupassem numa tarde de Novembro.
Como combinado, todos se vestiram de caçadores, de forma a dar ideia a quem visse que o encontro não passava de uma mera confraternização dos devotos de Artemisa.
Foram chegando, por volta do meio dia,  saudaram-se pelos toques e pelas palavras rituais e abriram fraternalmente os farnéis, que foram estendendo sobre mesas desmontáveis, como se aquilo fosse mesmo um piquenique de verdade.
Á medida que foram chegando, Manuel da Silva Barbosa foi-os saudando, um como se fosse o ddt (dono disto tudo) do encontro, pedindo-lhes discrição nos movimentos e o relaxamento indispensável, para que quem passasse na estrada não pudesse sequer imaginar que o que ali acontecia era, nem mais nem menos, do que a reunião de um conselho florestal.
Cinco de entre os carbonários foram incumbidos por Barbosa de ficar à coca, vigiando o horizonte, para que nenhum intruso pudesse entrar ali perante a distração dos outros.
Quando já estavam todos, Manuel Barbosa dirigiu-lhes a palavra, a todos no seu conjunto
Temos trabalhado ativamente, liquidando alguns dos vermes da sociedade. Escolhemos criteriosamente  espécimes corruptos, que viviam exclusivamente do dinheiro do povo e se situavam entre a fonte e o destino, intermediários entre quem decide e quem recebe. Discretamente, sem que ninguém ainda tenha percebido, já eliminamos 111, coisa que não foi comunicada, porque nem sequer os primos têm que saber. O que é importante, queridos primos, não é que cada um de nós saiba, mas que cada um de nós faça. E que o fazer seja perfeito, como tem sido, produzindo, por natureza, o seu efeito essencial que é o de estancar o desperdício do dinheiro público.
O sangue da república esvai-se em inúmeras feridas que se têm aberto nos seus membros e matá-la-á se não lhos amputarmos, como se fossem ramos doentes e sem cura. O nosso objetivo é estancar completamente esse derramamento de recursos, primeiro de uma forma discreta, operacionalmente rigorosa e expedita, depois num diálogo com a nação, que precisa de saber que há gente na floresta, lutando pela sobrevivência da pátria.
Peço aos primos que repartam os farnéis em pequenos grupos, trocando as iguarias e as ideias entre os grupos e nomeando entre vós quem possa trazer a ideia comum a um conselho mais restrito, de apenas sete primos, que, ainda esta noite, procurará definir novos caminhos e passará a luz a todas as vendas.
Lá ficaram até às 5 da tarde, como se fossem um clube de caçadores, até que dispersaram, cada um para o seu destino.
Nada foi decidido entre eles, não tendo sido tomada nenhuma medida conjunta nem adotada nenhuma diretiva política.
Tudo ficou entregue, como deveria ser à consciência ética de cada rachador, na sua individualidade da sua essência.
Não se sabe nem nunca se saberá qual foi a síntese. Talvez nem tenha havido síntese, porque não há síntese de pessoas que pensam, ganhando umas sobre as outras como se as ideias de umas fossem melhores que as das outras.  Sabe-se apenas, porque a reunião foi branca e sobre isso não foi determinado segredo, que aqueles homens se uniram para pensar como indivíduos, não como coletivo, o destino da pátria e se comprometeram entre si a, na base de práticas individuais, ou seja, sem obedecer a quem quer que fosse, cada um deles, sozinho ou com outros primos, tomar as medidas que, em suas consciências, se reputassem mais urgentes e mais eficazes para contribuir para acabar com a degradação em que a república entrou.
Esta é uma república de indivíduos, de pessoas concretas, trabalhadores e empresários, homens e mulheres. – escrevia naquele dia à noite, o próprio Manuel da Silva Barbosa no blog Ramificações. Não há uma mole humana, uma massa, responsável pelas asneiras dos governos. Há sim pessoas com fome, cada uma delas com a obrigação ética de tudo fazer para que na base da liberdade, da igualdade e da fraternidade, se curem as feridas abertas no tecido social, se amputem os ramos que secaram e pesam sobre o tronco e se abram novas vias para a seiva que o povo fornece com o seu trabalho, para o desenvolvimento da sociedade.
Não será agora o fim do mundo, se quisermos continuar a navegar. Mas pode ser o fim do mundo se cruzarmos os braços, largarmos os machados e não cuidarmos da floresta, repondo-lhe o viço que lhe falta.
Temos que roçar o mato e aniquilar as ervas daninhas que nos reduzem o pão, sob pena de amanhã sermos apenas um exército de famintos, sem forças para continuar Portugal.
Na semana seguinte apareceram mortos, todos a boiar em rios, com uma bala cada um na nuca, doze pessoas, homens e mulheres, todos com sinais exteriores de riqueza, porém sem que se lhe conhecesse a origem da mesma.
Os jornais continuaram a difundir a versão da polícia, que era comum a todos os casos. A instabilidade social continuava a provocar uma onda de furtos, estando os ladrões avisados da condição das pessoas que assaltam e matam, com o fito único de os roubar.
Aquelas mortes, algumas de pessoas que tinham relações privilegiadas com gente das câmaras ou dos ministérios, não tinham, inequivocamente, nenhuma motivação política. Eram simples assaltos de ladrões vulgares, que vão aproveitando a confusão para incrementar a criminalidade, sem que haja polícias suficientes para os perseguir.
Ao mesmo tempo alguns empresários começaram a lançar a ideia de que os problemas do país não se resolveriam com o parlamento, como se este se tivesse transformado numa inutilidade, o que levou o deputado Joaquim Varela, um bem instalado advogado do Partido Socialista, a comentar perante as televisões que estávamos perante o cúmulo da arrogância, como se não fosse verdade que o hemiciclo é o mais expressivo cambão da república, para ele e para todos os advogados da ponta esquerda à direita do dito.
O empresário deixara entender, com toda a clareza, que se poderia dispensar essa canalha e reduzir o poder a um pequeno governo e ao presidente da república, porque com isso de pouparia muito dinheiro.

II.     


A crise crescia todos os dias ao olhar de Angelina e, mais importante do que isso, ao olhar dos portugueses, especialmente dos mais religiosos, que são também os mais tolerantes e os que mais acreditam no mal, que é castigo de deus e no bem, que agora vêem mais adiado, como se tivéssemos todos que passar por uma provação, destinada do alto.
Isto é o poder de deus. – dizia D. Josefa quando ouvia as notícias da crise, o mesmo que diz quando troveja ou a televisão passava notícias de vulcões, terramotos, tempestades, como se deus fosse o responsável por toda a merda que acontece sobre a terra.
Quando não se entendem as coisas, quando não se conhecem os mistérios, é assim, por regra, como já foi antes com os trovões e as pestes.
Os mendigos já não são os romenos, sempre alegres, com as suas concertinas, nos cruzamentos da cidade. São portugueses de todas as idades e condições, gente desempregada, que não tem coragem para roubar e não tem vergonha para pedir.  A cidade passou a meter medo à noite; mas agora mete medo mesmo durante o dia, passando cada um de nós a ter a sensação que vai ser assaltado na próxima esquina, ou atropelado se deixar o passeio para se desviar para o meio da estrada.
Os funcionários públicos receberam no mês passado meio salário e as empresas continuam a falir a um ritmo assustador, porque não têm que lhes compre os bens que produzem ou porque, pura e simplesmente, deixaram de ter matéria prima, porque os bancos deixaram de pagar aos seus fornecedores. Nos supermercados, os bens começaram a escassear, com excepção do  leite que, ao que parece, é o único bem alimentar em que o país é auto-suficiente. Os preços dispararam para valores incríveis, devido à escassez e os seguranças, agora em número reforçado, olham-nos a todos como se fossemos todos ladrões.
Os automóveis são poucos, quase nenhuns e os táxis desapareceram da cidade, como que por mistério. Vê-se um, de vez em quando, cheio de pessoas e de haveres no tejadilho, como se todos estivessem envolvidos num êxodo para lugar desconhecido.
Vêem-se agentes da polícia por todo o lado, como se estivessem a cumprir as ordem dos comandos, armados que estão até aos dentes, como parece ser. Mas, estranhamente, eles não intervêm, mesmo perante os assaltos que são feitos nas suas barbas, como se tudo aquilo fosse fogo de vista e as armas não tivessem munições.
A greve dos juízes dura há mais de um mês, com o encerramento de todos os tribunais, anunciando o respetivo sindicato que só voltarão ao trabalho quando lhes pagarem os atrasados e for reposto em funcionamento o sistema informático, que avariou e que ninguém repara porque não há dinheiro para os indispensáveis ajustes diretos.
Há mais de uma semana que cada pessoa só pode retirar 10 euros por dia nas caixas de multibanco, o que ocasionou filas incríveis em todas as caixas de todo o país, justificadas pela dificuldade de as abastecer.
Consta que o primeiro ministro Gustavo Lopes não sai de São Bento há cinco dias, o que parece ser verdade porque passou a falar diariamente aos portugueses, apelando à calma e pedindo-lhes que aguentem por mais algum tempo, porque tem soluções à vista para a grave crise que afeta o país.
Os mesmos apelos passaram a ser feitos, com uma diferença de apenas meia hora pelo líder da oposição.
No parlamento, que passou a funcionar todos os dias, os deputados de todos os partidos chegaram, finalmente, à unanimidade, apelando em uníssono à salvação nacional e à união dos portugueses, como se a pátria estivesse pela hora da morte e a salvação passasse inevitavelmente por eles.
À porta do palácio, milhares de desempregados passaram a revezar-se, dia e noite, com cartazes em que lhes chamam ladrões, traidores, vigaristas e malandros, entre outros epítetos, o que criou um novo mercado para vendedores de cachorros quentes e de sopas servidas em copos de plástico.
A solução poderia passar por eleições, como deseja o chefe da oposição. Mas não há condições para as realizar, porque acabou o papel e não há dinheiro suficiente para pôr as máquinas dos partidos em movimento.
Razão tinha o Partido Comunista, que nunca concordou com a posição dos outros, no sentido de proibir os partidos de receber ajudas em dinheiro. Eles, que são a fonte da democracia, ficaram completamente na mão dos bancos, não havendo um único que aceite financiá-los, porque todo o dinheiro é indispensável para pagar ao estrangeiro o que se pode, sob pena de o abastecimento, que já é escasso, passar a ser nulo.
Uma greve geral paralisou o país, envolvendo empregados e patrões, funcionários públicos e trabalhadores de todas as áreas mas também desempregados que, por natureza, não tinham entidade patronal contra a qual protestar.
As lojas chinesas, não se sabe lá porquê, mas seguramente por mero oportunismo mercantil, lançaram no mercado uns albornozes pretos, com um capucho a lembrar o dos frades, porém com a singularidade de ser largo e ter nas suas abas duas fitas de velcro, que permitiam tapar a cara. Vendidos por valores entre os 5 e os 7 euros, passaram esses albornozes a ser o traje dos desempregados e dos mendigos, evitando-lhes a vergonha de mostrar a face quando a fome os obrigava a pedir.

III.

O governador do Banco de Portugal apresenta-se cada dia mais nervoso, como quem tivesse um justo receio de lhe cair em cima todo o edifício. Os bancos, admitiu ele, estão literalmente tesos e não é possível acudir-lhes como se lhes acudia antes, que a fábrica dos escudos já fechou e a dos euros não é controlada por eles.
O melhor – recomenda ele – será que os acionistas agarrem nalgum dinheiro e recapitalizem as instituições, em vez de guardarem a massa nos offshores, como se afigura mais prudente.
O sistema financeiro português enfrenta um conjunto de sérios desafios, decorrentes do clima de instabilidade financeira internacional, particularmente acentuada na Europa – considerava o Banco no seu último relatório.
A banca nacional tem resistido bem até agora mas a situação é séria e exige medidas urgentes.
O aumento dos juros da dívida pública, as fracas perspetivas de crescimento da economia e o enorme buraco das contas públicas do Estado tornaram a situação muito complicada.
Os bancos portugueses andam de mão estendida por toda a Europa, mesmo por todo o mundo e ninguém lhes empresta dinheiro, como se já não fossem bancos, ou coisa que se pareça.
Alguma vez se viu um banco ter dificuldades em obter dinheiro emprestado? – questionava Angelina.
O dr. Eugénio Ferreira e perentório, como se os bancos fossem uma mercearia, que já não tem dinheiro para comprar o açúcar. Os merceeiros têm que esquecer a conta da loja e colocar o deles, aquele que têm arrecadado dos bons tempos, em movimento.
E o estado, sempre à porta dos bancos a reclamar que precisa de dinheiro para pagar aos funcionários, aos consultores, às construtoras? O estado que cobra impostos, mas cujo valor não chega para pagar as prestações?
Esse, diz o governador, tem que proceder à implementação de medidas de política que permitam consolidar, de forma credível e sustentada, as finanças. Um outro discurso, vago, abstrato, sem ir direito ao assunto, como é próprio dos discursos de estado.
Os bancos – diz o governador – têm que repensar as estratégias de financiamento, que emprestar menos e  e estimular a poupança. Mas não será isto outro absurdo? Emprestar menos é coisa que se compreende, porque quem não tem, não pode emprestar. Mas fará algum sentido estimular a poupança, como se a poupança fosse um mamilo ou um falo?
Não foi esta economia construída essencialmente na base do consumo? Não é preciso que uns gastem para que outros produzam?
Claro que faz sentido, porque a poupança de uns é  a liberdade de outros. Se as pessoas poupam e mantêm os seus dinheiros no banco, elas não gastam, mas os bancos podem gastá-las à vontade, multiplicá-las em créditos, usá-las para alavancar todos os derivados ou derivativos que fazem o seu quotidiano.
Claro que o dr. Eugénio Ferreira, rodado como anda, há mais de 40 anos, nestas coisas da macroeconomia, conhece bem a aplicação do velho princípio de Lavoisier: na natureza nada se perde, nada se cria e tudo se transforma.
Diz o último relatório do banco central que as perspetivas de aumento de incumprimento sugerem a necessidade de reforço da dotação de imparidade para perdas na carteira de crédito, em especial nos empréstimos a particulares para consumo e outros fins e nos empréstimos às sociedades não financeiras. Tudo na mesma linguagem hermética, enigmática, obscura, mas, sobretudo delicada.
Traduzido esta naco de prosa por miúdos, de forma a que as coisas fossem percetíveis, poderia o banco central ter escrito uma outra coisa, do género: se não há crédito disponível para o bom funcionamento das empresas, é previsível o crescimento do desemprego. Por isso, é também previsível que os particulares e as empresas não financeiras deixem de pagar os seus empréstimos a horas, o que vai gerar uma imparidade entre as receitas e as responsabilidades dos bancos. Então, como tudo isso é previsível, têm os bancos que descobrir uma forma de tapar esse buraco, a que se chamou de imparidade, porque é uma palavra mais sofisticada e mais elegante.
É obvio que só há duas maneiras de tapar estes buracos que são de dinheiro: ou com dinheiro ou com a mágica da contabilidade. Se não há dinheiro, tem que se arranjar uma fórmula que permita restabelecer a paridade, que não é uma verdadeira paridade, porque nisto não há pares, mas uma igualdade de valores, embora se sinal contrário, entre o ativo e o passivo, de forma a que a escrita fique limpinha e ninguém note que o buraco existe.
Quanto maior é o buraco maior deve ser o dote, como se o dito fosse uma espécie de vagina. Quando o buraco é muito grande, deveria dizer-se que é preciso um dotão, mas não seria uma palavra bonita. Por isso se convencionou chamar-lhe dotação.
Esse buraco, pelo andar da crise, pode transformar-se num poço sem fundo, naturalmente nos próprios bancos. Mas também aqui se mistifica tudo. O banco central avisa que para evitar que os bancos se afundem, devem os acionistas juntar-se e entrar com dinheiro que permita reforçar o seu capital.
Quando se fala de evitar que os bancos se afundem cria-se na opinião pública a ideia de que o buraco não está nos próprios bancos mas fora deles, como se fosse uma cratera na estrada por que viaja cada um.
Claro que tudo isto é pensado cuidadosamente por todos os gurus. Falar de buracos dentro dos próprios bancos implicaria a responsabilização direta dos mesmos e sobretudo dos seus dirigentes, que são gente boa, com boas relações, filhos de boas famílias. Falar de buracos fora dos bancos, buracos tão grandes que eles se podem afundar neles, é responsabilizar a sociedade pelo seu arranjo, do mesmo modo que se responsabiliza a mesma, por via do estado e do instituto das estradas, pelo arranjo das vias pelas quais circulamos no dia a dia.
Que as coisas não estavam bem era claro. Noutro passo do mesmo relatório considerava o banco central que o reforço do capital do sistema bancário se afigura imprescindível para assegurar a continuidade da sua capacidade de resistência a choques adversos adicionais. Tudo cifrado, como nos passos anteriores; e tudo deixando a ideia de que os bancos são uma espécie de robocops, sujeitos permanentemente a combates desiguais, contra as forças do mal.
Transmitia-se, todos os dias, ao povo a ideia de que o que é preciso é confiar nos bancos, arvorados  espécie de tábuas de salvação da república, sem os quais a mesmo não sobreviveria, nem sobreviveria a  própria união. Ficava claro que, se necessário fosse, cada um de nós haveria de ter a abdicação suficiente para dar tudo com vista à salvação do seu banco, como antes fizeram os nossos antepassados, que se imolaram aos milhares para a defesa da fé.
O grande drama do nosso tempo está em que antes, apesar de as comunicações serem mais difíceis, todos conheciam o inimigo, que eram os sarracenos, os infiéis, os que não veneravam o nosso deus mas um outro deus que era um concorrente forte, num mercado de duopólio entre cristãos e muçulmanos.
Há muito que tinha acabado o mercado livre, em que deuses de todas as formas e feitios dominavam o mundo, às dezenas, talvez centenas, permitindo aos crentes uma opção tão livre como as que hoje se encontram nos supermercados. Mas agora ainda é pior.
Os mercados têm fúrias que são muito mais violentas do que as de qualquer deus grego ou romano – e todas imprevisíveis, porque dos mesmos não se conhece sequer o retrato, coisa elementar para se publicar um anúncio do tipo procura-se vivo ou morto, ou para se desencadear um combate.

IV.                      

As jornadas parlamentares do partido do governo encerraram com um ataque muito violento ao presidente da república, por causa da pobreza.
O presidente Aurélio Cunha, que repetir o mandato e, por isso mesmo, teve que se dirigir aos pobres e miseráveis, que são a maioria do eleitorado, falando-lhes ao coração, como o deve fazer qualquer político que queira ser eleito.
O primeiro ministro Gustavo Lopes não se conteve e veio para a praça dizer que não é aceitável usar a pobreza, que afinal é de todos, como elemento do debate eleitoral.
O combate à pobreza, disse ele, deve ser do estado e da sociedade – e não dos políticos, sob pena de se inverter toda a ordem natural das coisas. Afinal, os pobres são hoje quase todos os cidadãos, com exceção dos membros da classe política e dos seus amigos, na melhor recuperação que se poderia ter feito do ambiente medieval, em que se traçou o futuro do continente.
Já era assim antigamente. Depois deixou de ser; e agora terá que ser, porque não há recursos suficientes para que todos sejam ricos e porque os pobres sempre foram a essência das sociedades, sem a qual não era possível haver ricos e prósperos cidadãos, a quem a sorte bafeja, precisamente porque sabem colocar os pobres no seu devido lugar, que é o da pobreza.
A pobreza é, assim, um autêntico desígnio do governo, sem o qual não haverá nem competitividade nem emprego. Todos temos que retirar conclusões da história mais recente do mundo em que vivemos. – disse Gustavo  Lopes aos camaradas deputados. Ainda recentemente, o presidente Hu me garantiu que, se o partido não tivesse conseguido manter os milhões de chineses, que hoje produzem para todo o mundo, nos limiares de alimentabilidade adequados, nunca teria a China o nível de desenvolvimento que atingiu. E eles conseguiram progressos notáveis; passaram em poucos anos de 80 gramas de arroz por dia para 190 gramas, o que é mais do dobro.
Para nos colocarmos no mesmo nível de progresso temos que reduzir os nossos níveis de consumo, reduzir o arroz e a batata, eliminar o açúcar e, sobretudo, socializar os desperdícios. Felizmente, por iniciativa da sociedade civil, o país dispõe hoje de bancos alimentares contra a fome e de redes sociais que permitiram eliminar a pobreza envergonhada, dignificando-a. Os restos dos restaurantes são hoje completamente aproveitados e devidamente embalados de forma a poderem ser consumidos, o que não só contribui para o crescimento da economia, como contribui para a sustentabilidade. Tudo com a enorme vantagem de as pessoas que recebem esses restos não terem que mendigar, recebendo-os com a mesma dignidade com que fariam compras num supermercado.
O estado não pode deixar, porém, de dar atenção a algumas desigualdades que a atual situação ainda comporta. Não é justo que aqueles que têm algum rendimento recebam gratuitamente os alimentos recuperados, aquilo a que antigamente chamavam restos. É justo que, tendo eles algum rendimento, paguem alguma coisa para constituir um fundo de apoio à pobreza e não um fundo de combate à pobreza, uma vez que a pobreza se transformou num desígnio nacional.
Por isso mesmo, Gustavo Lopes verberava o facto de o presidente Aurélio Cunha, que é um dos ricos deste país, ter usado a pobreza como argumento eleitoral, num sentido absolutamente perverso, como é o de afirmar aos pobres que a pobreza é uma coisa anormal, que tem que se combater.
Se ele pensasse isso sinceramente e não pensasse precisamente o contrário, distribuiria pelos pobres os milhões que tem à sua disposição na presidência, coisa que, obviamente não faz, porque são esses milhões que fazem a diferença e que constituem o objeto da sua candidatura.
É preciso falar a verdade aos portugueses. E há questões que são questões de estado, questões relativamente à quais têm que se entender todos os agentes políticos, porque todos estamos no mesmo barco e pelas mesmas razões.
É preciso dizer aos portugueses que a pobreza é um problema do estado e da sociedade, que temos que encarar como normal, porque é nela que reside a força e a competitividade da economia. Se não tivesse o número de pobres que tem, nunca a China atingiria o progresso que atingiu. O PIB per capita dos chineses é de 5.400 dólares; o nosso PIB é de mais de 24.000 dólares. Para ser os competitivos, temos que reduzir o PIB per capita para níveis inferiores ao dos chineses,
É, por isso, absolutamente irreal continuar a falar de salários mínimos de 500 €, porque o salário médio dos chineses não ultrapassa os 300 € e o nosso salário médio é de mais de 1.500 €. Por isso, o salário mínimo deveria ser reduzido a 100 €, o que me parece um número razoável, quando é certo que a sociedade já se incumbiu da resolução de boa parte dos problemas da sobrevivência, graças às referidas redes sociais que o governo apoia.
Somos um país da união europeia e temos que manter o nível e a credibilidade das instituições públicas, a começar pelo parlamento e pela presidência da república. Mas para que isso seja possível é indispensável que a população tenha consciência de que não é viável que o país continue a viver acima dos recursos que tem.
O país é o povo; e como sempre aconteceu na nossa história, é o povo que o mantém, com todos os sacrifícios com que sempre foi glorificado e com uma história de aventura e de conquista que não podemos esquecer e que temos que continuar, porque Portugal é eterno.
Gustavo Lopes arrancou aplausos de todos os camaradas, como se viu, com toda a clareza, no jornal das 9. Estava ali um homem sincero e um discurso claro, que punha as coisas no devido lugar, como deve ser.
A pobreza acabava de se transformar, de forma clara e inequívoca, num dos desígnios essenciais do regime e havia um governante que, pela primeira vez, assumia isso com toda a clareza, justificando-o com a necessidade de criar condições que nos permitam ser tão competitivos como os chineses.
Mas era preciso ir mais longe; e isso não foi dito por Gustavo Lopes, apesar da recomendação que, de forma muito veemente, lhe tinha sido feita pelo presidente Hu, quando o visitou em Lisboa e depois foi confirmado em Bruxelas, ao mais alto nível.
Isso de a canalha deixar de trabalhar e receber uma indemnização para ficar em casa, sem fazer nada, não pode continuar, não só porque não há dinheiro que aguente, mas também porque é antissocial. Ninguém pode entender, com um mínimo de razoabilidade, que aqueles que não trabalham sejam sustentados pelo estado ou pelas empresas, quando nada dão à sociedade, de quem se transformam em verdadeiros vermes.

V.  

No final de Fevereiro os funcionários públicos não viram cair os vencimentos nas suas contas, porque, não se sabe ainda bem, o governo não conseguiu arranjar os recursos necessários para proceder aos pagamentos.
No mês passado receberam só metade e deveriam ter recebido neste mês a outra metade e a totalidade do que se venceu no fim do mês..
Em Janeiro foi explicado que tinha havido atrasos no processamento dos fundos que o governo conseguiu nos mercados internacionais e que, por isso, tinham que distribuir o mal pelas aldeias. Agora era mais fino; nem a metade em atraso nem a totalidade do mês.
Pela primeira vez se teve a sensação de que a fortaleza que era, até agora, o emprego público tinha sido abalada, como nunca se vira.
O ministério das finanças emitiu um comunicado informando que se registaram problemas em dois computadores, o que impediu o processamento tempestivo dos pagamentos.
Uma equipa alargada de técnicos estaria, segundo o ministério, a tentar resolver o problema com a maior urgência, de forma a minorar as dificuldades das famílias.
O ministério aconselhava os funcionários a usar o cartão de crédito, declarando assumir a responsabilidade pelos juros que puderem, por essa razão, onerar as suas contas.
No mesmo dia à tarde, a associação dos bancos emitiu um outro comunicado, afirmando a vontade de todo o sistema financeiro em cooperar com o governo. Prevendo-se que a reparação dos computadores do ministério das finanças possa demorar algum tempo, a associação recomendou as funcionários que não tivessem cartão de crédito que se dirigissem aos seus bancos, pois que haviam sido tomadas providências no sentido de os mesmos serem emitidos no prazo de 24 horas.
Na barra inferior das televisões, enquanto era lido o comunicado da associação dos bancos, um texto corrido informava que a taxa de juro pela utilização do cartão de crédito era de 34%.
No dia seguinte havia filas e filas em todos os bancos, com os funcionários públicos a requisitar cartões de crédito, que lhes eram entregues sem nenhuma restrição, contra a simples apresentação de um recibo de vencimento. Estava o problema resolvido e o país voltou a respirar, provado que ficou, de forma inequívoca, que, afinal, a falta de dinheiro nos cofres públicos não tinha nenhum fundamento pois que, se assim fosse, os bancos não se substituiriam ao estado, para resolver, de forma eficaz, um problema tão delicado como tinha sido o da falta de pagamento dos salários.
Há muito tempo que não se viam as centrais sindicais e os diversos sindicatos dos funcionários públicos a aplaudir a eficácia do governo e, especialmente, a solidariedade dos trabalhadores bancários com os da função pública, concretizada num esforço humano que só podia compreender-se como manifestação sincera de uma verdadeira solidariedade de classe.
Para além da solução do concreto problema do pagamento dos salários, esta operação redundou, como veio explicar o primeiro ministro, numa autêntica criação de igualdade.
O que, em boa verdade, aconteceu foi que o governo alargou a todos os funcionários públicos, do mais humilde ao de escalão mais elevado, uma regalia que, antes da avaria, era restrita aos ministros e altos funcionários.
Esta atitude mereceu os maiores elogios dos sindicatos, que, segundo alguns dirigentes, não viam há muito tempo tão clara afirmação de confiança no funcionalismo. Mas mereceu também o aplauso das organização patronais, que apelaram ao governo para alargar estes excelente benefício aos trabalhadores cujas empresas não conseguiam pagar no fim do mês, sob pena de séria violação do princípio da igualdade.
Passados dois dias, o ministro da economia, há meses envolvidos, com o  ministro do trabalho, na formatação de um fundo que permitisse responder a esse magno problema, anunciou que os trabalhadores com salários em atraso poderiam, outrossim, requisitar os seus cartões de crédito, depois de prévia comunicação do atraso dos pagamentos, ao fundo de garantia salarial.
Havia em tudo isto um cheiro pré-revolucionário, que era percetível por parte das pessoas mais interessadas na análise da informação mas que não o era pelo povo, como é da própria natureza dele.
De um lado, há tão poucos dias, o chefe do governo anunciava que a pobreza constituía um desígnio nacional, indispensável para retirar o país da crise, devendo os salários baixar, pelo menos para os níveis praticados na China. Do outro, afirmava-se, como que em contradição, toda esta fartura de cartões de crédito distribuídos a todos os cidadãos com salários em atraso.
Era o espírito europeu a ressuscitar.
Sejamos; com toda nossa alma, a Europa - mas a Europa do passado, do presente e do futuro, e entendendo-se por Europa todos os outros continentes também, naquilo que têm de aproveitável para se viverem com a inteligência. – apelava Pessoa, em 1920, também ele ressuscitado agora, quase um século depois, quando o destino colocou Portugal e a Grécia no mesmo barco, talvez o de Caronte, recriado agora para transportar países moribundos.
Era esse o pressentimento que tinham alguns intelectuais, desses que dizem mal de tudo, como Angelina, que viam na operação cartão de crédito uma espécie de sinal de vida, daqueles que acontecem sempre, pouco antes da morte, aos moribundos.
Só duas nações - a Grécia passada e o Portugal Futuro - receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude. - escreveu o mesmo Pessoa, transformado, ele próprio num fantasma da pátria. Um português não pode demorar-se numa fé, numa crença, numa opinião: tem que buscar imediatamente a contraria, para perenemente se libertar.
Das feições de alma que caracterizam o povo português – escrevia ele -  a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há de ser prejudicial.
Bem se viu isto na resposta das centrais sindicais e das confederações patronais à generalização dos cartões de crédito, que  ninguém contestou e todos aplaudiram, quando umas semanas antes verberavam todos contra os porcos capitalistas que exigiam do país uns míseros 6% de juros.
Tudo estava já explicado pelo poeta:
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma ação sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.
Por mais que afirmemos a nossa originalidade, considerava o poeta que, afinal, não era bem assim, porque, também nesse sentido, nos parecemos muito com os alemães, porque agimos sempre em grupo, e cada um do grupo age apenas porque os outros agem. Como se viu na correria aos cartões de crédito.
Nessa comparação, que parece genética, Pessoa foi ainda mais longe:
Aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da autoridade — acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objetiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da ação. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.
Se assim não fosse, há muito tempo que o líder socialista Gustavo Lopes teria caído, em vez de ressuscitar das suas próprias cinzas, como Fénix, apenas porque é autoritário e audaz, tem um grupo e leva o grupo atrás de si, imitando-lhe o discurso até no tom de voz, como se estivesse incorporado em todos os outros.
Talvez tudo isso aconteça porque, como também escreveu Pessoa, somos incapazes de revolta e de agitação.
Dizia ele, por relação ao 5 de Outubro:
Quando fizemos uma revolução foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficámos miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e fingimento. Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.
Poderia ter escrito o mesmo, se estivesse vivo, relativamente ao 25A.
Todos os partidos, sem exceção de nenhum, se renderam à reconstrução do mesmo modelo, da mesma miséria, da mesma diferença que distinguia os ricos e os pobres, os que detêm o poder e os que obedecem como escravos.
Por isso mesmo continua a valer a pena refletir sobre a utopia do poeta, como se ela tivesse vocação de eternidade:
 Trabalhemos ao menos — nós, os novos — por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio e no dissolvente. É a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica.
Foi esta última mensagem que deu origem, um mês depois de toda a gente com salários em atrasos já ter cartão de crédito, mais precisamente em meados de Março, a uma estranha mensagem, reproduzida, de forma estranha e automática, em todos os telemóveis do país: Esgota o teu crédito antes que ele acabe. Consta que vai acabar dentro de dias.
Nenhum meio de comunicação social deu notícia deste sinal de alarme, pela simples razão de que, tendo sido recebido por toda a gente não tinha a qualidade da notícia, que é a novidade.
A partir de 27 de Março, quando os funcionários e os empregados com salários em atraso se dirigiram às caixas de multibanco para usar os cartões de crédito, todas elas lhes disseram a mesma coisa: não é possível proceder a levantamentos nesta caixa. Por favor dirija-se à caixa mais próxima.
Nesse dia deixou de haver dinheiro e os cartões deixaram de funcionar nos restaurantes e nas bombas de gasolina. Mas continuou a ser possível usá-los no pão der açúcar e no continente, até aos respetivos limites de crédito mensal, que eram os do próprio valor dos salários.
Sobre o assunto não foram dadas nenhumas explicações nem foi publicitado nenhum protesto.

VI.                      

   No dia 18 de Abril, uma semana antes do aniversário 25A, apareceram, a boiar no Tejo sete cadáveres. Um deles era do secretário geral da UGT, Norberto Ferreirinha,  outro do alto dirigente da Intersindical, Adelmo Francisco e os restantes cinco  pertenciam a personagens que ninguém conhecia.
No dia 19 de mesmo mês apareceram mais dois cadáveres no rio Trancão e quatro na Cruz Quebrada, debaixo da ponte sobre o Jamor.
            No total tinham sido assassinadas 13 pessoas, mas apenas duas delas era conhecidas. As outras eram cidadãos anónimos, cuja identificação nem sequer foi publicada nos jornais que disseram apenas que não se conheciam quaisquer motivações para os assassinatos.
            Do que não havia dúvidas, porque isso foi observado e publicado pelos jornais, era do método: todos tinham sido mortos com um tiro certeiro na nuca, não havendo em nenhum dos cadáveres mais do que uma bala.
            O essencial dessa realidade – a morte de 11 pessoas não identificadas – foi completamente abafado pelas exéquias dos dois mártires do sindicalismo, tão desunidos nas vidas, mas fatalmente unidos na morte, numa cerimónia presidida pelo bispo de Lisboa.
Os funerais foram para o Alto de São João e, segundo a polícia, contaram com a presença de mais de um milhão de pessoas. A maioria envergava aqueles albornozes pretos, com um capuz que permite tapar a cara, os quais agora se vendem em todas as lojas chinesas.
Não se viu no funeral nenhum dirigente político conhecido, ou porque não foram mesmo ou porque se embrulharam eles próprios naqueles balandraus.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

As profecias da D. Rosa

Tudo isto e o mais foi esquecido por momentos durante os 3 dias da visita do presidente Hu a Portugal. Todos os jornais, mais as televisões, anunciaram ruidosamente que o pais tinha conquistado a confiança do mais importante líder do mundo.
Hu é um comunista convicto, um homem que ofereceu a sua vida ao ideal comunista. Os capitalistas, os representantes da burguesia, os social fascistas e toda a demais escumalha que ele aprendeu a odiar rastejava-lhe agora aos pés, como se se assistisse em Lisboa a uma revolta da própria história.
Um deputado do PS que já foi do MRPP desabafava no Snob para um camarada de partido:
Estás a ver como poderíamos estar se não tivéssemos parado no maoismo? Esta é a China que todos os partidos burgueses combateram e que deu certo..
Mas o teu Mao matou 200 milhões de pessoas, dez vezes mais que o Estaline e 20 vezes mais do que o Hitler…
E quantos vamos nós matar à fome?
A conversa acabou ali, com o outro a dizer-lhe que ele dizia aquilo porque já sabia que não iria entrar nas próximas listas.
Esta conversa deprimente chocava brutalmente com as notícias do dia. Era como se Hu fosse uma aparição, daquelas que surgem sempre em tempos de crise profunda, como aconteceu em Fátima, cuja senhora é uma das responsáveis pelo facto de não termos um desenvolvimento semelhante ao dos chineses. Ou não foi ela que lançou a mensagem de que era preciso combater o comunismo até que os russo se convertessem.
A aparição de Hu touxe outras imagens ao horizonte: mais investimento, aumento de exportações e o reforço da aliança como parceiro estratégico, apagando-se da história o anticomunismo primário que conduziu o país à miséria.
Um articulista conservador escreveu que governo de Gustavo Lopes fez bem em apostar na carta chinesa.
Pequim é o novo farol do Mundo, a grande potência que desafia a hegemonia ocidental através do soft power. E tem dinheiro para comprar dívida pública portuguesa a preços de mercado.
Explicava o articulista que a  China beneficiou da crise de 2008 que virou o tabuleiro geoestratégico de pernas para o ar e pode hoje influenciar a falência ou a salvação de estados, moedas e pessoas.
Estamos dispostos a tomar medidas concretas para ajudar Portugal a ultrapassar a crise financeira global. -  disse Hu na despedida, como se estivesse disposto a assumir-se como pai da nossa pátria. E o articulista comentava: a afirmação é reconfortante quando a colocação de dívida nos mercados internacionais começa a ser difícil. O governo precisa de mais  750 milhões a seis anos e de 1,2 mil milhões a dez anos e ninguém lhes pega.
Tal como previra Angelina, encontrar quem empreste dinheiro a um país que está teso haveria de ser cada vez mais difícil, mesmo que os países tenham alguma similitude com as pessoas. A D. Ana nunca disse que ia ao prego empenhar as joias, quando os anéis eram a única coisa que tinha com algum valor, para além dos dedos. Justificava-se dizendo que ai ao banco e toda a gente julgava, porque se julga pelas aparências, como na justiça, que o que ela andava a fazer eram grandes negócios, talvez de importação e exportação, ou coisa assim.
Portugal também não diz que está falido e que precisa de dinheiro para o dia a dia, para pagar aos ministros e aos funcionários, para tudo o que é instituto ou associação pendurado no orçamento. Os jornais falam diariamente de vender a dívida, como se a dívida fosse alguma coisa que,  paradoxalmente, tivesse valor.
Claro que tem. – comenta Angelina. A dívida ocupa o primeiro lugar da produção portuguesa. Antes produzíamos, vinho, enchidos, azeite, carruagens de caminho de ferro, limas do Feteira, vidros da Marinha Grande. Hoje produzimos dívidas, em valor que é bem mais elevado do que o desses tempos em que Portugal era um país pobre.
Se Portugal não produzisse dívida, para além de ser um país pobre, miserável, não teria a notoriedade que tem; não apareceria todos os dias nos jornais e nas televisões do mundo, como um dos países a quem os grandes operadores financeiros dão a maior atenção.
O problema é que a dívida é tanta e tão grande que já é difícil encontrar quem a compre. Assistimos a um fenómeno semelhante ao que vemos nos anos de excedentes agrícolas. A fartura é tanta que os produtos apodrecem por falta de mercado, acabando por se cumprir o ditado de que não há excesso de fartura que não dê em fome.
A única grande diferença que há entre a fartura de dívida e a fartura de produtos agrícolas reside no facto de a primeira provocar a baixa dos preços e da a segunda, à margem de todas as regras do mercado, provocar o aumento.
Quando tínhamos pouca dívida para vender ela era baratíssima. Agora que temos dívida a dar com um pau, os preços subiram vertiginosamente quando o que era natural é que estivessem pela hora da morte como acontece sempre que há fartura.
O país tem cumprido a sua missão de produzir dívidas, como se essa fosse a principal função dos governos. Por isso, todos os portugueses deveriam dar-se por satisfeitos, em vez de, como fazem alguns, talvez até já sejam a maioria, desejarem a queda do governo do dr. Gustavo Lopes, aquele que há oito anos usou o slogan gostavas de viver num país próspero, então vota Gustavo.
O problema – dizia Angelina – é que num dia destes ninguém vai querer comprar. E aí, quando a dívida já for tão farta que não seja viável produzir mais dívida, o país precisa de pensar em produzir outras coisas. Do drama está em que talvez já não tenha quem saiba.
O tal cronista, como se fosse uma pitonisa, diz que é preciso tornar o país mais competitivo e produtivo e, sobretudo, encontrar uma estratégia de saída para a crise em dois ou três anos, coisa pouca na vida de uma nação.
Mas o FMI estima que 15,5% da riqueza dos portugueses seja devorada no pagamento da dívida em 2011. Ou seja, nós vendemos a dívida, até foi bem vendida, com juros altos, mas ainda temos que pagar o preço, como se em vez de sermos os vendedores fôssemos os compradores.
Há aqui outro paradoxo. Então a gente vende e ainda tem que pagar? Isso é gestão que se compreenda? Imaginem que o pais é uma puta: então ela ainda paga aos clientes? E a imprensa, as rádios, a televisão embarcam nisto, não denunciam isto?
 É a parte da fatura de anos de acesso fácil ao crédito que fizeram subir os salários e os preços mais depressa em Portugal, ou em Espanha, do que no Norte da Europa. – diz o cronista. Hoje temos filas de pessoas às portas dos centros de emprego. E escolas a abrir ao fim de semana para alimentar os alunos. Mas  no próximo ano será pior.
.Segundo a vidente Rosa, uma das mais prestigiadas de Lisboa, ao ponto de os Mercedes pretos fazerem fila à sua porta, como se ali fosse uma praça de táxis, Portugal está condenado a dez pragas, na virada da primeira década do século XXI.
Como os seus clientes são políticos, D. Rosa fundamenta as suas visões nos livros, porque se assim não fosse não teria credibilidade e, por isso mesmo, não podia ser contratada por ajuste direto.
As águas do Tejo serão vermelhas, como o foram às águas do Nilo, durante sete dias e sete noites, como foi escrito no Exodus 7.14.
Depois disso, o rio será invadido por uma praga de rãs, que só desaparecerão por mão divina, como escreveram os profetas no Exodus 8.1.
A seguir virão os piolhos, o que obrigará toda a gente a rapar o cabelo, de três em três dias, como está escrito no ponto 8.19 do mesmo livro e atingirá os próprios magos, entre os quais se situa a própria D. Rosa.
Uma praga de moscas cumprirá o destino marcado nos livros sagrados, como está determinado em 8.20-23, tudo pela ordem indicada e antes que o gado seja atingido por uma peste que o vitimará e causará grande mortandade nos que ousarem comer a sua carne, tudo em conformidade como o mesmo Exodus 9.1.
Úlceras e tumores atingirão os políticos com corações pérfidos, especialmente o que não pagarem a quem lhes indicar o destino. – sentencia D. Rosa. Está destinado no Exodus 9.8 e esta praga já começou. Foi por ela vitimado o deputado Valter da Costa, três meses depois de ter saído essa porta, sem pagar a conta, uns miseráveis cinco mil euros que lhe pedi
Trovões como nunca se ouviram e saraiva destruirão todas as culturas quando os alentejanos forem buscar gado a Espanha, como o fizeram os egípcios nas terras de Gósen (Ex.9.22). Porque eles querem contrariar a vontade de deus, deus terá que concluir o seu trabalho enviando-nos uma praga de gafanhotos, que deixará o país sem pasto, tudo como está destinado em Ex. 10.7 e Ex. 10.7-11, que deus voltou a reler agora, milhares de anos depois das pragas do Egito.
Haverá ainda não três dias de escuridão mas muitos dias de escuridão, porque faltará o dinheiro para as câmaras pagarem a luz à EDP. Será o poder de deus a proteger os mais pobres e a facilitar os assaltos que precisarão de fazer para matar a fome aos filhos.
Rosa tinha preparado longamente a ladainha, que repetia a cada um dos políticos e a cada um dos gestores que engrossavam dia a dia a sua refinada clientela. Ao sexagésimo dia do transe em que entrou, depois de ter decidido alimentar-se apenas com algas marinhas, aproveitando a campanha aberta pelo presidente da república para o regresso às coisas do mar, D. Rosa anunciou a morte dos primogénitos, o que levou as principais figuras do país a mandar os filhos para o estrangeiro, como forma de os defender da praga.
Deus – dizia ela – está muito triste com Portugal e com aqueles que o governam. Todo o mal está nas famílias, na reprodução dos vícios, na imitação dos pais. Os vossos filhos primogénitos serão mortos, porque deus se determinou a acabar com a vossa raça.

domingo, 24 de outubro de 2010

O Dr. Manuel Gonçalves vai ao banco...

O país já está parado há algum tempo por manifesta falta de dinheiro. É como se houvesse um sorvedouro em local secreto, daqueles locais que nem os jornalistas descobrem onde estão.
Os bancos, tão indispensáveis ao bom andamento da economia, queixam-se, por via das pessoas que nos atendem ao balcão e que mostram na face um ar de pedintes, embora engravatados, como se vissem em nós os salvadores.
Precisamos todos de poupar, temos que poupar muito – diz o funcionário Jorge Luís, um alentejano à beira dos 60, que mostra, nos últimos tempos, uma tristeza no rosto que contrasta com a alegria permanente do louco que todos os dias se senta no rebate da porta do banco.
Era para se reformar agora, pois tem aqueles tempos do ultramar que se duplicam ou triplicam, ninguém percebe isso bem. Mas já diz que por este andar até pode não ter reforma.
Foi uma cena quando o dr. Manuel Gonçalves, que é um homem prudente, ali se deslocou para levantar 50.000 euros em dinheiro.
Cumprindo as instruções, procurou sondá-lo sobre o destino da massa, ao que Gonçalves respondeu de imediato e sem meias palavras. Isto não está seguro, tenho que ter algum dinheiro em casa.
Mas o dinheiro em casa não rende nada. – ripostou o outro.
No banco também não rende nada. Ainda pagamos para ter o dinheiro no banco. Vocês guardam-nos, teoricamente ele está seguro, mas nenhuma garantia temos de que nos devolvem a massa quando nós quisermos. Um depósito é uma espécie de entrega ao confisco, se quisermos movimentar o nosso dinheiro na hora. A ideia que nos transmitem é a de que o dinheiro deixa de ser nosso; e por isso criam todas as dificuldades, como agora você está a criar. Lembra-me a minha mãe quando eu era pequeno. Eu juntava o dinheiro das prendas e ela dava-me um vale quando eu tinha 100 escudos. Um dia eu queria comprar uma máquina fotográfica, que custava 400 escudos. Foi um martírio até que me devolvesse o dinheiro. E os argumentos eram os mesmos que vocês, os dos bancos, agora usam. É um desperdício, não deves comprar isso que não vai reproduzir o dinheiro,
Os bancos portam-se como se fossem os nossos pais quando éramos crianças, no tempo difícil da ditadura. Nos momentos mais críticos arrebanhavam o dinheiro dos miúdos a troco de uns vales com que nos consolavam e que, na realidade, não valiam nada, porque o dinheiro estava gasto, eles não o tinham e nenhum de nós tinha a coragem de lho pedir.
É essa  a sensação que temos agora: pomos o dinheiro no banco e o banco comporta-se, quando lho pedimos, como se o não tivesse.
Compreende-se que seja assim, sim senhor. Os bancos transformaram-se no sangue do governo e o governo é cada vez mais o corpo dos bancos, onde todos os ex-governantes, muitos dos quais nada fizeram na vida antes da política, começaram todos nas juventudes, acabam inexoravelmente, em lugares de topo, ninguém falando deles e criticando apenas aqueles que, por mérito próprio e por conhecerem bem as casas em que trabalharam, se viram guindados de antigos contínuos a administradores.
Sentada com Francisco Beirão na mesa do canto do Snob, longe daqueles jornalistas que ficam logo à entrada, Angelina vai continuando a lição, em que assenta as suas profecias.
Este bife, com uma carne maravilhosa, é,  provavelmente, de um qualquer circuito paralelo, que o trouxe das terras de Miranda para Lisboa. Não encontras esta carne nos supermercados, pela simples razão de que se produz em quantidade tão pequena que apenas se vende em pequenas boutiques como esta. Os outros, a populaça, come carne importada de todo o mundo. Não há nisso nenhum mal, a não ser o de que essa carne é comprada a crédito e, num dia destes não há dinheiro para a pagar. Quando isso acontecer ninguém come carne; mas pior do que isso, ninguém come mais nada do que tiver que ser importado, como se o grande merceeiro de que todos dependemos nos cortasse o crédito.
Mas, Angelina, ainda há muita gente com dinheiro, eu tenho o meu ordenado, muita gente tem o seu ordenado e todos os ordenados são pagos pelo banco e ficam no banco até que precisemos dele. Depois, quando eu vou ao supermercado, pago sempre a pronto; não faço como a minha mãe que, coitada, tinha que comprar fiado, para pagar no fim do mês.
Isso é verdade. Mas há outra verdade. O teu dinheiro não é o teu dinheiro; é do banco em que o depositas. E o banco empresta-o a quem calha, às empresas e ao governo, aos que querem jogar na bolsa, a toda a gente que compra casa e que só vai pagar, como combinado, durante 20 ou 30 anos. Estes são devedores seguros; talvez até sejam os únicos devedores seguros, pelo menos encontro tiverem empregos. Fazem das tripas coração e pagam, mas, se não pagarem, os bancos ficam-lhe com as casas, cujas hipotecas serviram de lastro a outros empréstimos, sempre de valores maiores, que eles contraíram. O problema maior está nos créditos sobre as empresas que vão à falência ou nos empréstimos feitos para comprar papel. Aí os bancos ficam a arder e começa a arder o teu dinheiro.
Depois – continua Angelina – vem o estado. Antigamente dizia-se que o estado somos todos nós, mas isso não é verdade. O estado são os funcionários públicos, os políticos e os amigos, uma espécie de grande empresa da qual todos dependemos e cujos prejuízos todos temos que pagar, como se fossemos sócios dessa empresa, ainda por cima sócios de responsabilidade limitada.
Se fosse uma sociedade anónima em que cada um tivesse que comprar uma ação à nascença ninguém nos vinha pedir nada, se os resultados fossem negativos a gestão desse para o torto. Mas não, se as coisas correm mal vão-nos ao bolso, ainda que eles possam consumir, esbanjar e distribuir pelos amigos o que bem entenderem, sem que alguém lhes vá à mão.
O estado deixou de ser um estado providência. É cada vez mais um provedor de negócios, um arranjador de oportunidades, um favorecedor dos que integram as elites sociais que o controlam.
Já assistimos a isto na União Soviética. A contradição entre o caráter planificado da economia e os interesses privados dos burocratas transformou-se na principal causa de insucesso da teoria marxista. A gestão burocrática implicou custos administrativos enormes e sacrifícios enormes para as grandes massas de produtores, sempre acossadas para aumentar a produtividade que se esvaia nos consumos do estado.
E o fim foi o que se viu: uma população na penúria, depois de ter dado tudo à revolução, com uma economia social insustentável, que acabou de forma fulminante quando o sistema burocrático caiu-
E o que vemos nós em Portugal? Lá voltaram ambos à conversa do orçamento, que continuava na ordem do dia.
Folheando estas páginas, chegamos à conclusão de que têm um peso enorme as obras de recuperação e remodelação de imóveis e os investimentos em informática, todos com verbas astronómicas.
Esse é o campo privilegiado dos boys e dos amigos, que conseguem ajustes diretos por quantias exorbitantes.
Não é de agora. Há anos que a execução orçamental é marcada pelo desperdício e pela de transparência dos contratos e das operações realizadas.
E Angelina ia dando exemplos, cada um deles mais escabroso do que o antecedente.
  Se analisarmos as aquisições de serviços na área da informática é de pôr as mãos na cabeça, tanto no que toca aos valores como à sobreposição de entidades atuando nas mesmas áreas.
O governo, prosseguia Angelina,  assenta a sua conceção de desenvolvimento no despesismo e no endividamento.
Tem a sua lógica, segundo eles: se não houver despesismo não há produto e se não houver produto não há impostos. Para que os impostos cresçam é importante que o despesismo seja o mais elevado possível, porque quanto mais elevado for maior é o lucro tributável e maior é a margem do défice, porque o défice que a União aceita é calculado em função do produto. Ou seja: se o estado influenciar o aumento do produto por via do despesismo, fica com maior margem para se endividar.
Mas isto tem um outro efeito. Se se gasta mais dinheiro do que aquele que se devia gastar com determinada obra, se se generaliza a prática de pagar preços mais altos do que os correntes no mercado, baixa a produtividade média mas, paradoxalmente, só para aqueles que não conseguem sentar-se na mesa do orçamento.
Passam as empresas a poder distinguir-se entre as que são beneficiadas pelos ajustes diretos, cujos donos andam de Mercedes, à semelhança dos donos do poder e as que não são e cujos donos andam em carros a cair aos bocados, porque não têm recursos nem crédito para comprar carros novos.
Depois, tens outra fraude que é a chamada formação profissional.
Uma palavra especial merecem as previsões relativas à formação profissional. Custa milhões e alimenta, sem nenhum resultado que possa ver-se, uns milhares de pessoas que mais não fazem do que contribuir para iludir as estatísticas do produto e do emprego. De que é que vale formar desempregados que partem da formação para a reforma, por não haver empregos? Claro que isso serve apenas para criar negócios para os amigos, suportados a peso de ouro pelo estado, num quadro de absoluta insustentabilidade. O estado não pode manter um sistema de ensino universal e, ao mesmo tempo, suportar um outro sistema de ensino paralelo, que custa quase tanto como o primeiro.
Mas mexer nisto é muito complicado, quase impossível sem uma revolução, como aconteceu na União Soviética, onde tudo caiu por causa dos mesmos vícios.
Mas tu achas que isto tem alguma coisa a ver com a União Soviética? – atalho Francisco Beirão. Isto é um país liberal.
É o método, meu amigo. O método e os vícios. Esses são os mesmos. O patrão do imaginário marxista é, tal como foi na União Soviética, o estado. E o drama reside nisso mesmo. Os ministros, os presidentes de câmara, os chefes dos institutos deixaram todos de se assumir como cidadãos eleitos para afivelarem a máscara do patrão capitalista a quem todos os demais devem obediência como se fossem seus operários, como se tivessem que trabalhar para eles ou de lhes pagar por tudo e por nada.
Só falta tributar o ar. Tudo o resto se tributa, a começar pela água. Claro que isto só é sustentável enquanto os bancos quiserem. O estado já nem sequer tem bancos ou tem um banco que não controla. Quem manda são os banqueiros, a quem toda a nação entrega o dinheiro e de quem o estado depende completamente. O edifício desabará quantos os bancos quiserem. Mais precisamente, quando os bancos deixarem de emprestar dinheiro ao governo.
Mas nós podíamos acabar com isso, se o governo fizesse contas à divida e estabelecesse um plano de pagamento. – avançou Beirão.
Mas como? Não vês quantos  milhares de pessoas que vivem da dívida? O que seria cortar radicalmente o endividamento e planificar pagar o passado?
Angelina concluía, mais uma vez, que isso só seria possível com uma revolução que, como todas as revoluções afastam a classe política existente para a substituir por outra.

sábado, 23 de outubro de 2010

A chegada do anjo

Dinheiro nos bancos? Ninguém tinha. Ninguém punha dinheiro nos bancos, porque se contava que há muitos anos, no tempo da república, quem lá o colocou perdeu tudo.
Hoje é contrário – replicou Angelina. Todas as pessoas têm conta no banco, mas não têm dinheiro e num dia destes não têm que comer. A meio do mês já acabou o saldo, mas o banco dá-lhes crédito de meio mês, porque ganha com isso. Cobra-lhe juros usurários, 24 ou 25 por cento, mais comissões de crédito ou atraso de pagamento. É um fabuloso negócio: com a crise o banco central empresta-lhes à taxa zero e os bancos emprestam a 25. Portanto, meu querido Francisco, o endividamento das famílias interessa aos bancos, que ganham milhões com ele. Como ganham milhões com a dívida do estado, a quem também emprestam dinheiro que pedem a outros.
A folga é muito grande mas tem limites. E se o desemprego avança, os bancos perdem pelo menos esse meio mês que adiantaram, coisa pouca, porque já o ganharam antes, mas que multiplicado por muitos é muito. Mas não é isso que os preocupa: o que os preocupa é haver uma pessoa que deixa de dar lucro, que passa a ser um número zero, que é um inútil para a sociedade, pelo menos a partir do momento em que deixar de ter direito ao subsídio de desemprego.
As pessoas valem apenas em função do dinheiro que movimentam e das dividas que contraíam. Sem dinheiro e sem dividas, conduziriam o sistema financeiro que sempre foi generoso com elas ao mais profundo desastre.
Deu-se esta conversa de Angelina com Francisco Beirão no auge de uma crise por causa do orçamento do estado, que o chefe da oposição, o dr. Mário Meneses, chefe do PSD, ameaçava sabotar, como acusavam os adeptos do primeiro ministro Gustavo Lopes.
Os bancos começaram a mexer-se porque o crédito mal parado tinha subido vertiginosamente. Claro que eles cortaram o crédito aos desempregados, mal falharam a primeira prestação. Mas se o orçamento não fosse aprovado, se não houvesse medidas especiais no que toca ao subsídio de desemprego, se, de um momento para o outro se cortasse a avalanche de dinheiro que os operários largavam nos seus cofres, o tal negócio do cartão de crédito dava prejuízo.
Já noutro momento, alegando as mesmas dificuldades e usando o mesmo esquema mental, os banqueiros tinham extorquido do governo garantias pessoais de mais de 8 biliões, que lhe permitiram ir buscar dinheiro a outros bancos, a que eles começaram agora a chamar o mercado.
Agora isto não podia parar, sob pena de as mais respeitáveis instituições do país, que são, neste como noutro, os ditos bancos, verem prejudicadas as suas legítimas expectativas, aliás garantidas, de forma profusa e clara, nos sucessivos programas de governo.
As coisas estavam a ficar azedas, mas Francisco não as conseguia perceber com clareza, porque tudo era dito na televisão numa linguagem cifrada.
Para além dos banqueiros, toda a classe política, com exceção de alguns sequazes do chefe da oposição, até os presidentes da OCDE e da união tinham passado nas televisões a dizer que o orçamento tinha que ser aprovado sem que houvesse sequer notícia do que seria o mesmo nem de que medidas conteria.
Como é que se pode insistir na aprovação de um orçamento sem que o mesmo se vislumbre e sem que se conheça o que nele se contém? – perguntou Francisco Beirão.
O importante não é o que o orçamento contém – explicou Angelina. O importante é o que o orçamento autoriza. E neste momento o dinheiro acabou. É preciso que o parlamento autorize o governo a pedir mais. Seria um desastre para os bancos se o país deixasse de se endividar e se eles deixassem de fazer o negócio da dívida.
O primeiro ministro Gustavo Lopes tinha sido convencido a prestar aquelas garantias, todos aqueles biliões e a intervir em dois bancos, com o argumento de que se o fizesse e se lançasse alguns novos impostos para tapar o buraco, ficaria o problema resolvidos. Mas tudo o vento levou e o vórtice da divida não poderia ser parado sob pena de se instabilizar todo o sistema financeiro.
Se não há dinheiro a girar, os bancos perdem – explicava Angelina. Os lucros do negócios são lucros. Foram aplicados em produtos financeiros; não podem voltar ao circuito. O que alimenta os bancos é o fluxo de dinheiro emprestado ao estado e aos particulares; é aí que se faz lucro. E se esse fluxo parar de um dia para o outro os bancos têm prejuízo. Por isso mesmo, não pode parar o endividamento.
O desemprego de mais de 10 por cento da população tinha causado um enorme rombo nas contas bancárias e um enorme prejuízo aos bancos. Foram milhões que deixaram de girar e de criar riqueza, ao ponto de se poder dizer que os bancos perderam muito mais do que os próprios desempregados. Os mais pobres, que são aqueles de quem as pessoas têm mais pena, perderam pouco, apenas uns 400 ou 500 euros por mês, coisa insignificante, que nem merece reparo. Os bancos, esses perderam milhões, sofreram prejuízos enormes, daí resultando a mediana conclusão de que é mais justo e eficaz que o governo os apoie do que apoie essa multidão de miseráveis que não tem onde cair morta.
Afinal, todos os partidos têm encontrado nos diversos conselhos dos bancos o refúgio que o desgaste do exercício do poder lhes causa durante os seus cansativos mandatos, razão pela qual o apoio à banca não pode ser visto senão como uma manifestação de generosidade.
Há, porém, quem não compreenda isto e deixe os banqueiros em situações difíceis, quando é certo que eles são sempre os melhores amigos dos governos. Foi o que aconteceu em Portugal, quando o governo de Gustavo Lopes os procurou desenrascar, num momento de grande dificuldade, fazendo aprovar um orçamento muito penalizador para essa canalha gastadora.
Virou-se contra ele toda a populaça, comandada por agitadores que apareceram como cogumelos de todos os cantos da sociedade civil. Os padres clamaram dos altares e os juízes acompanharam o tom dos sindicatos, exigindo que os ministros mostrassem as contas dos cartões de crédito que o governo lhes entregou e que eles usam generosamente para tudo aquilo de que precisam, tanto mais que eles permitem gastar tanto que não conseguem atingir os limites do crédito em cada mês. Tudo porque, apesar de o país estar falido, sempre os banqueiros foram generosos para com os governantes, nunca lhes colocando limites aos referidos gastos.
A já baixa competitividade das empresas portuguesas – que contribuem para a receita do Estado com apenas 8.000 milhões de euros de IRC, contra 12.800 milhões de IRS – será violentamente abalada com o novo regime da tributação das prestações de serviços, pois que, naturalmente, os prestadores (a recibos verdes) serão forçados a repercutir a elevadíssima taxa da prestação para a segurança social (29,5%) a que ficam obrigados a partir de Janeiro, taxa à qual acrescem mais 5% devidos por quem adquire os serviços. – escrevia no seu blog o jornalista Jorge Gomes.
Com este quadro, a única saída de muitos prestadores de serviços será a de engrossar os fluxos da emigração, que serão cada vez mais fortes. Ainda bem que é assim, que não fazem cá falta nenhuma, porque são uns calões, que não querem respeitar horários de trabalho têm a ambição de ter uma reforma.
Emigração é, também, o caminho natural dos empregados mais qualificados, para quem, para além do enorme crescimento da carga fiscal, contará mais o acentuado risco de desemprego que a economia portuguesa comporta. Pois concerteza, vão-se todos embora, que se assim for aumenta o PIB per capita, na mesma medida em que aumenta a dívida per capita, transformando-nos num povo rico, como são os cidadãos de todos os grandes devedores, que são os dos países em que a dívida per capita é maior que a dos países pobres, como é natural, atenta a boa relação que os ricos têm com as instituições financeiras.
Embora com medidas muito duras no que se refere à tributação dos rendimentos do trabalho, o orçamento não resolverá a questão essencial do país, que é da divida pública, que continuará a crescer, de forma irreversível. – continua o bloguista. Um gajo que escreve uma coisa destas não tem vergonha nenhuma, porque o que é normal é quem tem dívidas remeter-se ao mais profundo silêncio, em vez de alardear
Os números da divida são astronómicos, fixando-se em 123.000 milhões de euros, com uma perspetiva de endividamento adicional, em 2011, de mais de 74 mil milhões de euros, o que projetará a dívida pública para mais de 197 mil milhões de euros. Isto vai resolver o problema por uns meses. Mas passados esses meses, tudo ficará na mesma. Não na mesma, mas agravado, como explicou Angelina.
Se não crescer a dívida, os bancos vão à falência. Os bancos vivem da dívida, que é o melhor negócio dos tempos que correm. Seis por cento de 200 mil milhões são 12 mil milhões, muita grana, sem esforço nenhum.
Mas como não há fome que não dê em fartura e o dinheiro, para estes efeitos, não existe – é só papel – talvez os mercados obriguem o país a contrair empréstimos de 300 mil milhões, para pagar os 200 mil milhões e ficar com 100 mil milhões de folga. Aí os bancos ganham 18 mil milhões. Mas para isso é preciso uma aprovação do endividamento legitimada; são precisos os deputados, os jornalistas, os presidentes de câmara, as empresas, todos os que têm vivido à conta, a quem é justo pedir que tomem posição, que façam pressão e, no fim de contas, que aprovem.
O arquiteto Jorge dos Santos, que preside à maior rede de supermercados do país, já veio dizer que está farto de ouvir falar do orçamento, que é tempo de se resolver essa merda que já cheira mal. E ele tem razão: está a pagar aos fornecedores a nove meses e se os bancos não se abrirem, num dia destes lá se vai o negócio por água abaixo, porque os supermercados sem produtos não geram lucro e não estamos ainda em tempo de reconverter para a construção os enormes espaços que os ditos ocupam na periferia das grandes cidades.
Tudo isto é demasiado simples, tão simples que ninguém acredita que é assim. – continua, pedagogicamente, a perorar Angelina.
O dinheiro só é preciso se queremos pagar alguma coisa. Se não for preciso pagar nada, não é preciso dinheiro. Basta realizar as coerentes operações contabilísticas. Ora, se o país não tem dinheiro para pagar os juros, os credores não precisam de despender dinheiro para lho emprestar. Precisam apenas de lhe lançar os juros.
Como o país não tem dinheiro para pagar os juros, o que os credores fazem é o que sempre se fez, desde tempos imemoriais. Calculam os juros, juntam-nos ao capital, somam tudo e emprestam-lhe o dinheiro necessário para pagar toda a dívida, mais alguma coisa que são os juros futuros, até ao próximo vencimento, à taxa que eles, os credores a que agora chamam mercados, fixam a seu bel prazer, porque são eles quem tem a faca e o queijo.
Como isto é feito por intermédio dos bancos nacionais, os credores ficam com o sistema na mão. Ou o governo cede ou os bancos morrem. E acaba o jogo de uns e de outros.
Estás a sugerir que a democracia acabou, que os governos já não governam, que os nossos dirigentes não têm qualquer poder? – perguntou-lhe Francisco,
Não estou a sugerir, meu querido. Estou a explicar-te como é. Essa gente não conta nada. Eles são precisos por enquanto, porque são eles que legitimam o poder democrático, mas são meras marionetas, a maior parte nem sequer sabe o que diz. E são poucos os que compreendem este segredo. Nem sequer o primeiro ministro o domina e é por isso que ele se exprime como um sagui, falando de responsabilidade, de interesse nacional, de confiança e de uma série de outras coisas que não têm nada a ver com a realidade, a qual se resume a uma coisa, a coisa mais importante que é o dinheiro.
Francisco continuava a mergulhar nos cinco volumes de fotocópias do orçamento, como se aquilo fosse a bíblia de que dependia o afastamento do dilúvio.
Ressaltava à primeira vista que o endividamento global direto cresceria 11,573 mil milhões de euros. Para além disso, o governo pretendia autorização para emissão de dívida flutuante até 25 mil milhões de euros e  queria emitir garantias até ao limite de 21,181 milhões de euro bem como aumentar o endividamento global direto em 9,146 mil milhões de euros. A concessão de garantias a pessoas coletivas de direito público poderia ir até 7,2 mil milhões de euros.
A despesa prevista no orçamento era  de mais de  177 mil milhões de euros, o que significava que, pela primeira vez, a dívida pública acumulada no fim do exercício seria superior ao valor do orçamento anual.
Claro que o bloguista exagerava alguma coisa, mas não andava muito longe da verdade. Bem vistas as coisas, o drama estava em tudo isto acontecer num país em que as previsões dos impostos sobre o rendimento, mesmo com os agravamentos que reduziriam à miséria milhares de portuguesas não ultrapassava os 20,800 mil milhões de euros, ou seja  cerca de 11% da despesa.
Os números da despesa eram absolutamente escandalosos, mostrando que as entidades públicas continuam dispostas a viver acima das possibilidades do país.
Só a presidência da república tinha  um orçamento de mais de 16 milhões de euros para um homem só, sem que nenhum dos outros candidatos contestasse o orçamento, porque, afinal, todos os desejavam, como se o mesmo fosse uma espécie de logo e as eleições presidenciais uma espécie de sessão de bingo.
 A assembleia da república tinha um orçamento de quase 100 milhões de euros, quando é certo que os deputados trabalham só de terça a sexta, por umas horas e já deixaram de fazer as leis, limitando-se a aprová-las, tal como elas são preparadas pelos mesmos advogados que trabalham para os bancos.
Afinal, todos eram dependentes dos bancos, que aliás foram muito claros no encontro que os respetivos presidentes tiveram com o primeiro ministro. Ou os rapazes se portam bem ou vão para o desemprego. Se o orçamento não for aprovado, não recebem os salários.
Isto era um ultimato. O que poderiam fazer eles? Antigamente, uma boa parte dos políticos, que eram só  homens, era gente bem casada, com filhas de morgados que pagavam a conta de casa e da presença dos senhores deputados em Lisboa.
Depois do 25 A, os deputados nasceram do povo. Filhos de eletricistas, de cantoneiros, de guarda freios, de pequenos contabilistas, de empregados de escritório. Tudo gente pobre, que só poderia crescer se aprendesse a discreta arte de roubar. Por isso, moldaram a república ao seu jeito, sem grandes preocupações éticas e, ainda muito menos, sem preocupações políticas, como se não vissem que o próprio sistema que estavam a criar os transformaria em gente inútil e odiada pelo povo que os pariu e agora os rejeita e os odeia.
Para acalmar os ânimos, o primeiro ministro anunciou que iria eliminar uma série de gabinetes e institutos inúteis. Mas nada, mal se viu a lista logo se constatou que era tudo treta, como é próprio de um país em que tudo é da treta, a começar pelo presidente da república e a acabar nos presidentes das câmaras.
Os gabinetes dos ministros da república nos Açores e na Madeira, tinham orçamentos de mais de 350 milhões e 250 milhões, quando a verdade é que estes gabinetes deveriam ser extintos, porque, pura e simplesmente, nada os justificava.
O conselho económico e social, que é aquela coisa em que, de vez em quando se reúnem os reis dos sindicatos e das entidades patronais – as únicas instituições monárquicas que ainda sobrevivem - custa ao erário público 1,5 milhões, tudo em conformidade com a vontade dos bancos que financiam o orçamento
O  conselho superior da magistratura, uma entidade anódina que é uma espécie de coligação entre juízes e políticos para controlar o poder judicial, tinha um orçamento de 3,7 milhões de euros, quando a maioria dos seus membros ocupava outros postos, sendo o seu trabalho é transversal à atuação dos magistrados nos tribunais.
O tribunal constitucional, que é uma vaca sagrada do regime, por isso caríssima e inacessível, tinha uma verba de mais de 5 milhões de euros.
A entidade reguladora para a comunicação social, outra entidade constitucional inútil (ECI) tinha um orçamento de quase  5 milhões de euros e o provedor de justiça, que deveria ser um exemplo de exceção, também  mais de 5 milhões.
Depois vinha o ACIDI – alto comissariado para as minorias étnicas e diálogo intercultural -  uma espécie de clube das virgens, que não faz nenhum sentido, porque a imigração acabou e os imigrantes estão perfeitamente integrados, com um orçamento de mais de  15 milhões, logo seguido pelo instituto do desporto de Portugal que gastaria quase 76 milhões.
O país está prestes a morrer de fome  mas, ainda assim, a autoridade para a proteção civil irá consumir mais de 133 milhões de euros.
É talvez a entidade mais útil no futuro, por ser a única que, apesar de tudo, tem alguma experiência de catástrofes. Pode preparar as sopas para os sobreviventes e terá a oportunidade de usar os sacos para cadáveres que comprou há anos, a peso de ouro, num negócio conduzido pelo professor Ângelo das Neves, quando era ministro da administração interna.
Para além de 11 milhões para os gabinetes dos membros do governo dependentes da presidência do conselho de ministros, só os serviços de coordenação e os órgãos consultivos do primeiro ministro gastarão 194 milhões de euros.
Excessiva, demasiado excessiva, é também a despesa prevista para «serviços gerais de apoio, estudos, coordenação e representação» do ministério dos negócios estrangeiros. Mais de 208 milhões de euros, uma barbaridade para uma diplomacia discreta como é a nossa.
No ministério das finanças, para além de mais de 123 mil milhões para «gestão dívida e da tesouraria pública» havia uma verba de quase  14 mil milhões para «despesas excecionais.
Na justiça os números não eram menos generosos, com 61 milhões para «serviços gerais de apoio, estudo, coordenação controlo e cooperação». Inúmeras entidades inúteis e improdutivas, estavam predestinadas, todas elas a consumir, milhões e milhões de euros, como se este consumo fosse indispensável para demonstrar que se produz, como na realidade é.
Dissecando as verbas dos diversos serviços e organismos logo se via que ali tinham grande peso os arranjos em tudo o que era repartição ou gabinete e as despesas de informática. Era a democratização segundo uns e o esbanjamento segundo outros, os mais invejosos, que pareciam não querer aceitar a intenção de distribuir melhor os trabalhos, que um formigueiro de pequenos empresários de confiança dos agentes políticos haveriam de fazer, de uma ponta à outra do país.
O país não produz nem metade do que come, porque importa quase tudo, mesmo parte das hortaliça e das alfaces, sem esquecer as frutas tropicais, o peixe e a carne. Tem que fazer alguma coisa, ou os mercados tomam-nos por um país de calões. E se essas coisas em vez de serem pagas por 10 foram adjudicadas por 20, que é precisamente o dobro, aumenta o PIB na mesma proporção e fica o povo mais rico, porque mais ganha, ganhando também o estado, que lhe tributa os lucros com maior folga e menos ressentimento. Ou seja: o estado dá tudo com uma mão e tira uma pequena parte com a outra.
Não fossem as obras que conseguiu arranjar, por ajuste direto, em mais de duas dúzias de escolas, obras tão boas que deixaram as crianças tão felizes, não teria o Manuel Jerónimo a possibilidade de se montar num Mercedes, que comprou novinho em folha, como nunca tivera outro.
Tudo aconteceu na perfeição, quando ele andava mal e, num dia ao fim da tarde, telefonou à Maria Júlia, que sempre foi sua amiga e confidente e agora é a secretária do vereador do urbanismo.
Estou à rasca, Júlia. Cheio de dívidas. O banco já não me aceita as reformas e num dia destes cai-me tudo em cima. Não sei como hei de sair disto.
Olha Manel, a câmara vai reparar as escolhas todas. Limpar, pintar, pôr mobiliário novo. E tem que ser rápido, para antes das eleições. Tens é que contar com 20 por cento para o meu chefe, que me entregas a mim, em notas. Mas podes jogar com o preço à vontade.
Foi como se um anjo tivesse vindo do céu para o visitar.