domingo, 24 de outubro de 2010

O Dr. Manuel Gonçalves vai ao banco...

O país já está parado há algum tempo por manifesta falta de dinheiro. É como se houvesse um sorvedouro em local secreto, daqueles locais que nem os jornalistas descobrem onde estão.
Os bancos, tão indispensáveis ao bom andamento da economia, queixam-se, por via das pessoas que nos atendem ao balcão e que mostram na face um ar de pedintes, embora engravatados, como se vissem em nós os salvadores.
Precisamos todos de poupar, temos que poupar muito – diz o funcionário Jorge Luís, um alentejano à beira dos 60, que mostra, nos últimos tempos, uma tristeza no rosto que contrasta com a alegria permanente do louco que todos os dias se senta no rebate da porta do banco.
Era para se reformar agora, pois tem aqueles tempos do ultramar que se duplicam ou triplicam, ninguém percebe isso bem. Mas já diz que por este andar até pode não ter reforma.
Foi uma cena quando o dr. Manuel Gonçalves, que é um homem prudente, ali se deslocou para levantar 50.000 euros em dinheiro.
Cumprindo as instruções, procurou sondá-lo sobre o destino da massa, ao que Gonçalves respondeu de imediato e sem meias palavras. Isto não está seguro, tenho que ter algum dinheiro em casa.
Mas o dinheiro em casa não rende nada. – ripostou o outro.
No banco também não rende nada. Ainda pagamos para ter o dinheiro no banco. Vocês guardam-nos, teoricamente ele está seguro, mas nenhuma garantia temos de que nos devolvem a massa quando nós quisermos. Um depósito é uma espécie de entrega ao confisco, se quisermos movimentar o nosso dinheiro na hora. A ideia que nos transmitem é a de que o dinheiro deixa de ser nosso; e por isso criam todas as dificuldades, como agora você está a criar. Lembra-me a minha mãe quando eu era pequeno. Eu juntava o dinheiro das prendas e ela dava-me um vale quando eu tinha 100 escudos. Um dia eu queria comprar uma máquina fotográfica, que custava 400 escudos. Foi um martírio até que me devolvesse o dinheiro. E os argumentos eram os mesmos que vocês, os dos bancos, agora usam. É um desperdício, não deves comprar isso que não vai reproduzir o dinheiro,
Os bancos portam-se como se fossem os nossos pais quando éramos crianças, no tempo difícil da ditadura. Nos momentos mais críticos arrebanhavam o dinheiro dos miúdos a troco de uns vales com que nos consolavam e que, na realidade, não valiam nada, porque o dinheiro estava gasto, eles não o tinham e nenhum de nós tinha a coragem de lho pedir.
É essa  a sensação que temos agora: pomos o dinheiro no banco e o banco comporta-se, quando lho pedimos, como se o não tivesse.
Compreende-se que seja assim, sim senhor. Os bancos transformaram-se no sangue do governo e o governo é cada vez mais o corpo dos bancos, onde todos os ex-governantes, muitos dos quais nada fizeram na vida antes da política, começaram todos nas juventudes, acabam inexoravelmente, em lugares de topo, ninguém falando deles e criticando apenas aqueles que, por mérito próprio e por conhecerem bem as casas em que trabalharam, se viram guindados de antigos contínuos a administradores.
Sentada com Francisco Beirão na mesa do canto do Snob, longe daqueles jornalistas que ficam logo à entrada, Angelina vai continuando a lição, em que assenta as suas profecias.
Este bife, com uma carne maravilhosa, é,  provavelmente, de um qualquer circuito paralelo, que o trouxe das terras de Miranda para Lisboa. Não encontras esta carne nos supermercados, pela simples razão de que se produz em quantidade tão pequena que apenas se vende em pequenas boutiques como esta. Os outros, a populaça, come carne importada de todo o mundo. Não há nisso nenhum mal, a não ser o de que essa carne é comprada a crédito e, num dia destes não há dinheiro para a pagar. Quando isso acontecer ninguém come carne; mas pior do que isso, ninguém come mais nada do que tiver que ser importado, como se o grande merceeiro de que todos dependemos nos cortasse o crédito.
Mas, Angelina, ainda há muita gente com dinheiro, eu tenho o meu ordenado, muita gente tem o seu ordenado e todos os ordenados são pagos pelo banco e ficam no banco até que precisemos dele. Depois, quando eu vou ao supermercado, pago sempre a pronto; não faço como a minha mãe que, coitada, tinha que comprar fiado, para pagar no fim do mês.
Isso é verdade. Mas há outra verdade. O teu dinheiro não é o teu dinheiro; é do banco em que o depositas. E o banco empresta-o a quem calha, às empresas e ao governo, aos que querem jogar na bolsa, a toda a gente que compra casa e que só vai pagar, como combinado, durante 20 ou 30 anos. Estes são devedores seguros; talvez até sejam os únicos devedores seguros, pelo menos encontro tiverem empregos. Fazem das tripas coração e pagam, mas, se não pagarem, os bancos ficam-lhe com as casas, cujas hipotecas serviram de lastro a outros empréstimos, sempre de valores maiores, que eles contraíram. O problema maior está nos créditos sobre as empresas que vão à falência ou nos empréstimos feitos para comprar papel. Aí os bancos ficam a arder e começa a arder o teu dinheiro.
Depois – continua Angelina – vem o estado. Antigamente dizia-se que o estado somos todos nós, mas isso não é verdade. O estado são os funcionários públicos, os políticos e os amigos, uma espécie de grande empresa da qual todos dependemos e cujos prejuízos todos temos que pagar, como se fossemos sócios dessa empresa, ainda por cima sócios de responsabilidade limitada.
Se fosse uma sociedade anónima em que cada um tivesse que comprar uma ação à nascença ninguém nos vinha pedir nada, se os resultados fossem negativos a gestão desse para o torto. Mas não, se as coisas correm mal vão-nos ao bolso, ainda que eles possam consumir, esbanjar e distribuir pelos amigos o que bem entenderem, sem que alguém lhes vá à mão.
O estado deixou de ser um estado providência. É cada vez mais um provedor de negócios, um arranjador de oportunidades, um favorecedor dos que integram as elites sociais que o controlam.
Já assistimos a isto na União Soviética. A contradição entre o caráter planificado da economia e os interesses privados dos burocratas transformou-se na principal causa de insucesso da teoria marxista. A gestão burocrática implicou custos administrativos enormes e sacrifícios enormes para as grandes massas de produtores, sempre acossadas para aumentar a produtividade que se esvaia nos consumos do estado.
E o fim foi o que se viu: uma população na penúria, depois de ter dado tudo à revolução, com uma economia social insustentável, que acabou de forma fulminante quando o sistema burocrático caiu-
E o que vemos nós em Portugal? Lá voltaram ambos à conversa do orçamento, que continuava na ordem do dia.
Folheando estas páginas, chegamos à conclusão de que têm um peso enorme as obras de recuperação e remodelação de imóveis e os investimentos em informática, todos com verbas astronómicas.
Esse é o campo privilegiado dos boys e dos amigos, que conseguem ajustes diretos por quantias exorbitantes.
Não é de agora. Há anos que a execução orçamental é marcada pelo desperdício e pela de transparência dos contratos e das operações realizadas.
E Angelina ia dando exemplos, cada um deles mais escabroso do que o antecedente.
  Se analisarmos as aquisições de serviços na área da informática é de pôr as mãos na cabeça, tanto no que toca aos valores como à sobreposição de entidades atuando nas mesmas áreas.
O governo, prosseguia Angelina,  assenta a sua conceção de desenvolvimento no despesismo e no endividamento.
Tem a sua lógica, segundo eles: se não houver despesismo não há produto e se não houver produto não há impostos. Para que os impostos cresçam é importante que o despesismo seja o mais elevado possível, porque quanto mais elevado for maior é o lucro tributável e maior é a margem do défice, porque o défice que a União aceita é calculado em função do produto. Ou seja: se o estado influenciar o aumento do produto por via do despesismo, fica com maior margem para se endividar.
Mas isto tem um outro efeito. Se se gasta mais dinheiro do que aquele que se devia gastar com determinada obra, se se generaliza a prática de pagar preços mais altos do que os correntes no mercado, baixa a produtividade média mas, paradoxalmente, só para aqueles que não conseguem sentar-se na mesa do orçamento.
Passam as empresas a poder distinguir-se entre as que são beneficiadas pelos ajustes diretos, cujos donos andam de Mercedes, à semelhança dos donos do poder e as que não são e cujos donos andam em carros a cair aos bocados, porque não têm recursos nem crédito para comprar carros novos.
Depois, tens outra fraude que é a chamada formação profissional.
Uma palavra especial merecem as previsões relativas à formação profissional. Custa milhões e alimenta, sem nenhum resultado que possa ver-se, uns milhares de pessoas que mais não fazem do que contribuir para iludir as estatísticas do produto e do emprego. De que é que vale formar desempregados que partem da formação para a reforma, por não haver empregos? Claro que isso serve apenas para criar negócios para os amigos, suportados a peso de ouro pelo estado, num quadro de absoluta insustentabilidade. O estado não pode manter um sistema de ensino universal e, ao mesmo tempo, suportar um outro sistema de ensino paralelo, que custa quase tanto como o primeiro.
Mas mexer nisto é muito complicado, quase impossível sem uma revolução, como aconteceu na União Soviética, onde tudo caiu por causa dos mesmos vícios.
Mas tu achas que isto tem alguma coisa a ver com a União Soviética? – atalho Francisco Beirão. Isto é um país liberal.
É o método, meu amigo. O método e os vícios. Esses são os mesmos. O patrão do imaginário marxista é, tal como foi na União Soviética, o estado. E o drama reside nisso mesmo. Os ministros, os presidentes de câmara, os chefes dos institutos deixaram todos de se assumir como cidadãos eleitos para afivelarem a máscara do patrão capitalista a quem todos os demais devem obediência como se fossem seus operários, como se tivessem que trabalhar para eles ou de lhes pagar por tudo e por nada.
Só falta tributar o ar. Tudo o resto se tributa, a começar pela água. Claro que isto só é sustentável enquanto os bancos quiserem. O estado já nem sequer tem bancos ou tem um banco que não controla. Quem manda são os banqueiros, a quem toda a nação entrega o dinheiro e de quem o estado depende completamente. O edifício desabará quantos os bancos quiserem. Mais precisamente, quando os bancos deixarem de emprestar dinheiro ao governo.
Mas nós podíamos acabar com isso, se o governo fizesse contas à divida e estabelecesse um plano de pagamento. – avançou Beirão.
Mas como? Não vês quantos  milhares de pessoas que vivem da dívida? O que seria cortar radicalmente o endividamento e planificar pagar o passado?
Angelina concluía, mais uma vez, que isso só seria possível com uma revolução que, como todas as revoluções afastam a classe política existente para a substituir por outra.

sábado, 23 de outubro de 2010

A chegada do anjo

Dinheiro nos bancos? Ninguém tinha. Ninguém punha dinheiro nos bancos, porque se contava que há muitos anos, no tempo da república, quem lá o colocou perdeu tudo.
Hoje é contrário – replicou Angelina. Todas as pessoas têm conta no banco, mas não têm dinheiro e num dia destes não têm que comer. A meio do mês já acabou o saldo, mas o banco dá-lhes crédito de meio mês, porque ganha com isso. Cobra-lhe juros usurários, 24 ou 25 por cento, mais comissões de crédito ou atraso de pagamento. É um fabuloso negócio: com a crise o banco central empresta-lhes à taxa zero e os bancos emprestam a 25. Portanto, meu querido Francisco, o endividamento das famílias interessa aos bancos, que ganham milhões com ele. Como ganham milhões com a dívida do estado, a quem também emprestam dinheiro que pedem a outros.
A folga é muito grande mas tem limites. E se o desemprego avança, os bancos perdem pelo menos esse meio mês que adiantaram, coisa pouca, porque já o ganharam antes, mas que multiplicado por muitos é muito. Mas não é isso que os preocupa: o que os preocupa é haver uma pessoa que deixa de dar lucro, que passa a ser um número zero, que é um inútil para a sociedade, pelo menos a partir do momento em que deixar de ter direito ao subsídio de desemprego.
As pessoas valem apenas em função do dinheiro que movimentam e das dividas que contraíam. Sem dinheiro e sem dividas, conduziriam o sistema financeiro que sempre foi generoso com elas ao mais profundo desastre.
Deu-se esta conversa de Angelina com Francisco Beirão no auge de uma crise por causa do orçamento do estado, que o chefe da oposição, o dr. Mário Meneses, chefe do PSD, ameaçava sabotar, como acusavam os adeptos do primeiro ministro Gustavo Lopes.
Os bancos começaram a mexer-se porque o crédito mal parado tinha subido vertiginosamente. Claro que eles cortaram o crédito aos desempregados, mal falharam a primeira prestação. Mas se o orçamento não fosse aprovado, se não houvesse medidas especiais no que toca ao subsídio de desemprego, se, de um momento para o outro se cortasse a avalanche de dinheiro que os operários largavam nos seus cofres, o tal negócio do cartão de crédito dava prejuízo.
Já noutro momento, alegando as mesmas dificuldades e usando o mesmo esquema mental, os banqueiros tinham extorquido do governo garantias pessoais de mais de 8 biliões, que lhe permitiram ir buscar dinheiro a outros bancos, a que eles começaram agora a chamar o mercado.
Agora isto não podia parar, sob pena de as mais respeitáveis instituições do país, que são, neste como noutro, os ditos bancos, verem prejudicadas as suas legítimas expectativas, aliás garantidas, de forma profusa e clara, nos sucessivos programas de governo.
As coisas estavam a ficar azedas, mas Francisco não as conseguia perceber com clareza, porque tudo era dito na televisão numa linguagem cifrada.
Para além dos banqueiros, toda a classe política, com exceção de alguns sequazes do chefe da oposição, até os presidentes da OCDE e da união tinham passado nas televisões a dizer que o orçamento tinha que ser aprovado sem que houvesse sequer notícia do que seria o mesmo nem de que medidas conteria.
Como é que se pode insistir na aprovação de um orçamento sem que o mesmo se vislumbre e sem que se conheça o que nele se contém? – perguntou Francisco Beirão.
O importante não é o que o orçamento contém – explicou Angelina. O importante é o que o orçamento autoriza. E neste momento o dinheiro acabou. É preciso que o parlamento autorize o governo a pedir mais. Seria um desastre para os bancos se o país deixasse de se endividar e se eles deixassem de fazer o negócio da dívida.
O primeiro ministro Gustavo Lopes tinha sido convencido a prestar aquelas garantias, todos aqueles biliões e a intervir em dois bancos, com o argumento de que se o fizesse e se lançasse alguns novos impostos para tapar o buraco, ficaria o problema resolvidos. Mas tudo o vento levou e o vórtice da divida não poderia ser parado sob pena de se instabilizar todo o sistema financeiro.
Se não há dinheiro a girar, os bancos perdem – explicava Angelina. Os lucros do negócios são lucros. Foram aplicados em produtos financeiros; não podem voltar ao circuito. O que alimenta os bancos é o fluxo de dinheiro emprestado ao estado e aos particulares; é aí que se faz lucro. E se esse fluxo parar de um dia para o outro os bancos têm prejuízo. Por isso mesmo, não pode parar o endividamento.
O desemprego de mais de 10 por cento da população tinha causado um enorme rombo nas contas bancárias e um enorme prejuízo aos bancos. Foram milhões que deixaram de girar e de criar riqueza, ao ponto de se poder dizer que os bancos perderam muito mais do que os próprios desempregados. Os mais pobres, que são aqueles de quem as pessoas têm mais pena, perderam pouco, apenas uns 400 ou 500 euros por mês, coisa insignificante, que nem merece reparo. Os bancos, esses perderam milhões, sofreram prejuízos enormes, daí resultando a mediana conclusão de que é mais justo e eficaz que o governo os apoie do que apoie essa multidão de miseráveis que não tem onde cair morta.
Afinal, todos os partidos têm encontrado nos diversos conselhos dos bancos o refúgio que o desgaste do exercício do poder lhes causa durante os seus cansativos mandatos, razão pela qual o apoio à banca não pode ser visto senão como uma manifestação de generosidade.
Há, porém, quem não compreenda isto e deixe os banqueiros em situações difíceis, quando é certo que eles são sempre os melhores amigos dos governos. Foi o que aconteceu em Portugal, quando o governo de Gustavo Lopes os procurou desenrascar, num momento de grande dificuldade, fazendo aprovar um orçamento muito penalizador para essa canalha gastadora.
Virou-se contra ele toda a populaça, comandada por agitadores que apareceram como cogumelos de todos os cantos da sociedade civil. Os padres clamaram dos altares e os juízes acompanharam o tom dos sindicatos, exigindo que os ministros mostrassem as contas dos cartões de crédito que o governo lhes entregou e que eles usam generosamente para tudo aquilo de que precisam, tanto mais que eles permitem gastar tanto que não conseguem atingir os limites do crédito em cada mês. Tudo porque, apesar de o país estar falido, sempre os banqueiros foram generosos para com os governantes, nunca lhes colocando limites aos referidos gastos.
A já baixa competitividade das empresas portuguesas – que contribuem para a receita do Estado com apenas 8.000 milhões de euros de IRC, contra 12.800 milhões de IRS – será violentamente abalada com o novo regime da tributação das prestações de serviços, pois que, naturalmente, os prestadores (a recibos verdes) serão forçados a repercutir a elevadíssima taxa da prestação para a segurança social (29,5%) a que ficam obrigados a partir de Janeiro, taxa à qual acrescem mais 5% devidos por quem adquire os serviços. – escrevia no seu blog o jornalista Jorge Gomes.
Com este quadro, a única saída de muitos prestadores de serviços será a de engrossar os fluxos da emigração, que serão cada vez mais fortes. Ainda bem que é assim, que não fazem cá falta nenhuma, porque são uns calões, que não querem respeitar horários de trabalho têm a ambição de ter uma reforma.
Emigração é, também, o caminho natural dos empregados mais qualificados, para quem, para além do enorme crescimento da carga fiscal, contará mais o acentuado risco de desemprego que a economia portuguesa comporta. Pois concerteza, vão-se todos embora, que se assim for aumenta o PIB per capita, na mesma medida em que aumenta a dívida per capita, transformando-nos num povo rico, como são os cidadãos de todos os grandes devedores, que são os dos países em que a dívida per capita é maior que a dos países pobres, como é natural, atenta a boa relação que os ricos têm com as instituições financeiras.
Embora com medidas muito duras no que se refere à tributação dos rendimentos do trabalho, o orçamento não resolverá a questão essencial do país, que é da divida pública, que continuará a crescer, de forma irreversível. – continua o bloguista. Um gajo que escreve uma coisa destas não tem vergonha nenhuma, porque o que é normal é quem tem dívidas remeter-se ao mais profundo silêncio, em vez de alardear
Os números da divida são astronómicos, fixando-se em 123.000 milhões de euros, com uma perspetiva de endividamento adicional, em 2011, de mais de 74 mil milhões de euros, o que projetará a dívida pública para mais de 197 mil milhões de euros. Isto vai resolver o problema por uns meses. Mas passados esses meses, tudo ficará na mesma. Não na mesma, mas agravado, como explicou Angelina.
Se não crescer a dívida, os bancos vão à falência. Os bancos vivem da dívida, que é o melhor negócio dos tempos que correm. Seis por cento de 200 mil milhões são 12 mil milhões, muita grana, sem esforço nenhum.
Mas como não há fome que não dê em fartura e o dinheiro, para estes efeitos, não existe – é só papel – talvez os mercados obriguem o país a contrair empréstimos de 300 mil milhões, para pagar os 200 mil milhões e ficar com 100 mil milhões de folga. Aí os bancos ganham 18 mil milhões. Mas para isso é preciso uma aprovação do endividamento legitimada; são precisos os deputados, os jornalistas, os presidentes de câmara, as empresas, todos os que têm vivido à conta, a quem é justo pedir que tomem posição, que façam pressão e, no fim de contas, que aprovem.
O arquiteto Jorge dos Santos, que preside à maior rede de supermercados do país, já veio dizer que está farto de ouvir falar do orçamento, que é tempo de se resolver essa merda que já cheira mal. E ele tem razão: está a pagar aos fornecedores a nove meses e se os bancos não se abrirem, num dia destes lá se vai o negócio por água abaixo, porque os supermercados sem produtos não geram lucro e não estamos ainda em tempo de reconverter para a construção os enormes espaços que os ditos ocupam na periferia das grandes cidades.
Tudo isto é demasiado simples, tão simples que ninguém acredita que é assim. – continua, pedagogicamente, a perorar Angelina.
O dinheiro só é preciso se queremos pagar alguma coisa. Se não for preciso pagar nada, não é preciso dinheiro. Basta realizar as coerentes operações contabilísticas. Ora, se o país não tem dinheiro para pagar os juros, os credores não precisam de despender dinheiro para lho emprestar. Precisam apenas de lhe lançar os juros.
Como o país não tem dinheiro para pagar os juros, o que os credores fazem é o que sempre se fez, desde tempos imemoriais. Calculam os juros, juntam-nos ao capital, somam tudo e emprestam-lhe o dinheiro necessário para pagar toda a dívida, mais alguma coisa que são os juros futuros, até ao próximo vencimento, à taxa que eles, os credores a que agora chamam mercados, fixam a seu bel prazer, porque são eles quem tem a faca e o queijo.
Como isto é feito por intermédio dos bancos nacionais, os credores ficam com o sistema na mão. Ou o governo cede ou os bancos morrem. E acaba o jogo de uns e de outros.
Estás a sugerir que a democracia acabou, que os governos já não governam, que os nossos dirigentes não têm qualquer poder? – perguntou-lhe Francisco,
Não estou a sugerir, meu querido. Estou a explicar-te como é. Essa gente não conta nada. Eles são precisos por enquanto, porque são eles que legitimam o poder democrático, mas são meras marionetas, a maior parte nem sequer sabe o que diz. E são poucos os que compreendem este segredo. Nem sequer o primeiro ministro o domina e é por isso que ele se exprime como um sagui, falando de responsabilidade, de interesse nacional, de confiança e de uma série de outras coisas que não têm nada a ver com a realidade, a qual se resume a uma coisa, a coisa mais importante que é o dinheiro.
Francisco continuava a mergulhar nos cinco volumes de fotocópias do orçamento, como se aquilo fosse a bíblia de que dependia o afastamento do dilúvio.
Ressaltava à primeira vista que o endividamento global direto cresceria 11,573 mil milhões de euros. Para além disso, o governo pretendia autorização para emissão de dívida flutuante até 25 mil milhões de euros e  queria emitir garantias até ao limite de 21,181 milhões de euro bem como aumentar o endividamento global direto em 9,146 mil milhões de euros. A concessão de garantias a pessoas coletivas de direito público poderia ir até 7,2 mil milhões de euros.
A despesa prevista no orçamento era  de mais de  177 mil milhões de euros, o que significava que, pela primeira vez, a dívida pública acumulada no fim do exercício seria superior ao valor do orçamento anual.
Claro que o bloguista exagerava alguma coisa, mas não andava muito longe da verdade. Bem vistas as coisas, o drama estava em tudo isto acontecer num país em que as previsões dos impostos sobre o rendimento, mesmo com os agravamentos que reduziriam à miséria milhares de portuguesas não ultrapassava os 20,800 mil milhões de euros, ou seja  cerca de 11% da despesa.
Os números da despesa eram absolutamente escandalosos, mostrando que as entidades públicas continuam dispostas a viver acima das possibilidades do país.
Só a presidência da república tinha  um orçamento de mais de 16 milhões de euros para um homem só, sem que nenhum dos outros candidatos contestasse o orçamento, porque, afinal, todos os desejavam, como se o mesmo fosse uma espécie de logo e as eleições presidenciais uma espécie de sessão de bingo.
 A assembleia da república tinha um orçamento de quase 100 milhões de euros, quando é certo que os deputados trabalham só de terça a sexta, por umas horas e já deixaram de fazer as leis, limitando-se a aprová-las, tal como elas são preparadas pelos mesmos advogados que trabalham para os bancos.
Afinal, todos eram dependentes dos bancos, que aliás foram muito claros no encontro que os respetivos presidentes tiveram com o primeiro ministro. Ou os rapazes se portam bem ou vão para o desemprego. Se o orçamento não for aprovado, não recebem os salários.
Isto era um ultimato. O que poderiam fazer eles? Antigamente, uma boa parte dos políticos, que eram só  homens, era gente bem casada, com filhas de morgados que pagavam a conta de casa e da presença dos senhores deputados em Lisboa.
Depois do 25 A, os deputados nasceram do povo. Filhos de eletricistas, de cantoneiros, de guarda freios, de pequenos contabilistas, de empregados de escritório. Tudo gente pobre, que só poderia crescer se aprendesse a discreta arte de roubar. Por isso, moldaram a república ao seu jeito, sem grandes preocupações éticas e, ainda muito menos, sem preocupações políticas, como se não vissem que o próprio sistema que estavam a criar os transformaria em gente inútil e odiada pelo povo que os pariu e agora os rejeita e os odeia.
Para acalmar os ânimos, o primeiro ministro anunciou que iria eliminar uma série de gabinetes e institutos inúteis. Mas nada, mal se viu a lista logo se constatou que era tudo treta, como é próprio de um país em que tudo é da treta, a começar pelo presidente da república e a acabar nos presidentes das câmaras.
Os gabinetes dos ministros da república nos Açores e na Madeira, tinham orçamentos de mais de 350 milhões e 250 milhões, quando a verdade é que estes gabinetes deveriam ser extintos, porque, pura e simplesmente, nada os justificava.
O conselho económico e social, que é aquela coisa em que, de vez em quando se reúnem os reis dos sindicatos e das entidades patronais – as únicas instituições monárquicas que ainda sobrevivem - custa ao erário público 1,5 milhões, tudo em conformidade com a vontade dos bancos que financiam o orçamento
O  conselho superior da magistratura, uma entidade anódina que é uma espécie de coligação entre juízes e políticos para controlar o poder judicial, tinha um orçamento de 3,7 milhões de euros, quando a maioria dos seus membros ocupava outros postos, sendo o seu trabalho é transversal à atuação dos magistrados nos tribunais.
O tribunal constitucional, que é uma vaca sagrada do regime, por isso caríssima e inacessível, tinha uma verba de mais de 5 milhões de euros.
A entidade reguladora para a comunicação social, outra entidade constitucional inútil (ECI) tinha um orçamento de quase  5 milhões de euros e o provedor de justiça, que deveria ser um exemplo de exceção, também  mais de 5 milhões.
Depois vinha o ACIDI – alto comissariado para as minorias étnicas e diálogo intercultural -  uma espécie de clube das virgens, que não faz nenhum sentido, porque a imigração acabou e os imigrantes estão perfeitamente integrados, com um orçamento de mais de  15 milhões, logo seguido pelo instituto do desporto de Portugal que gastaria quase 76 milhões.
O país está prestes a morrer de fome  mas, ainda assim, a autoridade para a proteção civil irá consumir mais de 133 milhões de euros.
É talvez a entidade mais útil no futuro, por ser a única que, apesar de tudo, tem alguma experiência de catástrofes. Pode preparar as sopas para os sobreviventes e terá a oportunidade de usar os sacos para cadáveres que comprou há anos, a peso de ouro, num negócio conduzido pelo professor Ângelo das Neves, quando era ministro da administração interna.
Para além de 11 milhões para os gabinetes dos membros do governo dependentes da presidência do conselho de ministros, só os serviços de coordenação e os órgãos consultivos do primeiro ministro gastarão 194 milhões de euros.
Excessiva, demasiado excessiva, é também a despesa prevista para «serviços gerais de apoio, estudos, coordenação e representação» do ministério dos negócios estrangeiros. Mais de 208 milhões de euros, uma barbaridade para uma diplomacia discreta como é a nossa.
No ministério das finanças, para além de mais de 123 mil milhões para «gestão dívida e da tesouraria pública» havia uma verba de quase  14 mil milhões para «despesas excecionais.
Na justiça os números não eram menos generosos, com 61 milhões para «serviços gerais de apoio, estudo, coordenação controlo e cooperação». Inúmeras entidades inúteis e improdutivas, estavam predestinadas, todas elas a consumir, milhões e milhões de euros, como se este consumo fosse indispensável para demonstrar que se produz, como na realidade é.
Dissecando as verbas dos diversos serviços e organismos logo se via que ali tinham grande peso os arranjos em tudo o que era repartição ou gabinete e as despesas de informática. Era a democratização segundo uns e o esbanjamento segundo outros, os mais invejosos, que pareciam não querer aceitar a intenção de distribuir melhor os trabalhos, que um formigueiro de pequenos empresários de confiança dos agentes políticos haveriam de fazer, de uma ponta à outra do país.
O país não produz nem metade do que come, porque importa quase tudo, mesmo parte das hortaliça e das alfaces, sem esquecer as frutas tropicais, o peixe e a carne. Tem que fazer alguma coisa, ou os mercados tomam-nos por um país de calões. E se essas coisas em vez de serem pagas por 10 foram adjudicadas por 20, que é precisamente o dobro, aumenta o PIB na mesma proporção e fica o povo mais rico, porque mais ganha, ganhando também o estado, que lhe tributa os lucros com maior folga e menos ressentimento. Ou seja: o estado dá tudo com uma mão e tira uma pequena parte com a outra.
Não fossem as obras que conseguiu arranjar, por ajuste direto, em mais de duas dúzias de escolas, obras tão boas que deixaram as crianças tão felizes, não teria o Manuel Jerónimo a possibilidade de se montar num Mercedes, que comprou novinho em folha, como nunca tivera outro.
Tudo aconteceu na perfeição, quando ele andava mal e, num dia ao fim da tarde, telefonou à Maria Júlia, que sempre foi sua amiga e confidente e agora é a secretária do vereador do urbanismo.
Estou à rasca, Júlia. Cheio de dívidas. O banco já não me aceita as reformas e num dia destes cai-me tudo em cima. Não sei como hei de sair disto.
Olha Manel, a câmara vai reparar as escolhas todas. Limpar, pintar, pôr mobiliário novo. E tem que ser rápido, para antes das eleições. Tens é que contar com 20 por cento para o meu chefe, que me entregas a mim, em notas. Mas podes jogar com o preço à vontade.
Foi como se um anjo tivesse vindo do céu para o visitar.

sábado, 16 de outubro de 2010

O orçamento

O primeiro projeto desenvolvido no âmbito da atividade da SIBS foi a criação e o lançamento de uma rede partilhada de ATMs (Automatic Teller Machines), a rede caixa automático multibanco, a qual veio a iniciar o seu funcionamento em Setembro de 1985, com a instalação de 12 terminais nas cidades de Lisboa e Porto.
Dez anos após a sua fundação, a rede já era constituída por 3.745 equipamentos, colocando agora à disposição dos clientes dos bancos cerca de 11.440 Caixas Multibanco, nos quais se  realizavam em média de 63 milhões de operações por mês.
A rede passou a oferecer uma gama vastíssima de serviços, desde publicidade a carregamento de telemóveis, pagamento de impostos e taxas dos tribunais, pagamento da água e luz e transferências de conta para conta.
Deixou de ser necessário andar com o dinheiro no bolso e as pessoas começaram a levantar só o estritamente necessário para as bicas, para o tabaco e para as putas a quem, por razões que não são ainda conhecidas, não foram fornecidos terminais de multibanco, com devia ser permitido também aos mendigos que, coitados, foram muito prejudicados pelo sistema, incluindo-se neles, naturalmente, essa nova classe de trabalhadores, que é a dos arrumadores de automóveis, a quem, apesar do esforço e da dignidade da função, numa cidade em que é tão difícil estacionar, ainda ninguém reconheceu um estatuto de decência, continuando todos a trata-los como mendicantes, porque, na falta da maquininha se veem obrigados a estender a mão.
O último encontro de Angelina com Francisco Beirão ocorreu, fugazmente, no início de 2010. Foi uma  sabatina de dúvidas, que acabou ainda com mais dúvidas.  Foi neste encontro que ela lhe contou tudo isso sobre as máquinas multibanco, sem dizer, porém, diretamente, ao que queria chegar.
Francisco Beirão ia preparado para discutir com Angelina. Tinha fixado, quase decorado, o que lera nos jornais nos últimos tempos.
O problema, Francisco, não é o orçamento – disse-lhe ela. O problema é o défice. Vai chegar num instante a valores inimagináveis. E Portugal já não é o que era. Está muito pior do que no tempo de D. Carlos. Os adiantamentos do estado eram feitos apenas à casa real. Agora são feitos a tudo o que é  público, desde empresas completamente falidas até institutos e confrarias que  sugam diariamente o crédito público. E o estado já nem as melhores estradas tem, vendeu os melhores edifícios, transformou em papel tudo o que era valioso.
A república ergueu-se com o  confisco dos bens da igreja; mas até uma boa parte deles já foi vendida. E a florestas, que constituíam boa parte da riqueza nacional, arderam ou estão tão maltratadas que são precisos milhões para lhes recuperar o valor.
Mas há o mar – replicou Francisco Beirão, como se lhe quisesse dizer que o país não estava assim tão falido como ela referia. E temos o sol e o ar, que é um dos menos poluídos da Europa.
O mar já não é português; essa é outra grande mentira. O mar é da união e é ela quem administra os seus recursos. Já lá vão os tempos em que o país podia matar a fome com a sardinha e o peixe agulha que se pescava na costa e que chegava a todo o interior. Quando a fome voltar, não é possível voltar ao mar, que não é nosso, porque dele não podemos retirar o peixe, mesmo em tempo de aflição. Aliás, já nem temos barcos, porque os queimaram, com o dinheiro dos novos donos. É certo que temos a terra, mas ela está inculta e já não há quem a saiba trabalhar. Em menos de trinta anos o país perdeu a memória, como se essa multidão de analfabetos que antes sabia cultivar batatas e feijões tivesse necessidade de deletar todo o conhecimento para ocupar o espaço com o que lhe foi servido  em ações de formação das quais ganharam apenas as empresas formadoras.
Todo esse novo conhecimento, que custou milhões ao país vale zero. Tanto como valem os programas informáticos comprados há 30 anos sem direito a upgrade.
Já ninguém trabalha em ms-dos e isto é como se fosse um país ms-dos.
Isso não é verdade. Eu ainda sei plantar batatas. Deixam-se grelar, cortam-se as bocadinhos sem partir o grelo que há-de ficar em cada bocado, cava-se a terra, faz-se um rego onde se põe estrume, cobre o estrume com uma camada de terra, dispõem-se os bocados de batata com o grelo para cima e cobre-se tudo, no máximo com um palmo de terra. Tem que se fazer o rego direitinho, de preferência com uma linha em cada ponto da leira; e tirar a terra do rego sempre para o lado direito, não a utilizando toda na cobertura, de forma a que a que sobra constitua um combro mais elevado, sempre à direita do rego, de forma a que, à medida que se vai semeando, fique com outro combro à esquerda, servindo ambos como diques limitadores da água, quando se proceder á rega, depois da monda, lá para a primavera.
Francisco recordava os exercícios da infância, primeiro na brincadeira, como 6 ou 7 anos, seguindo o exemplo de pais e avós, com um pequeno sacho com que lhe ensinaram a fazer o seu batatal, uma coisa de 2 metros por dois, no sítio da Cabeleira, hoje um matagal irreconhecível. Depois, depois dos 12, a sério, como os homens e mulheres que o faziam por profissão e que ganhavam 5 escudos por dia, qualquer coisa como 2,5 cêntimos de euro ou menos de 20 cêntimos de dólar, no tempo em que 1 dólar valia 24 escudos.
Era o tempo em que se contava que a América tinha árvores de patacas, onde se dava um pontapé e o dinheiro caía, como se viesse do céu. O difícil era ir para lá. Era preciso vender terras, às vezes tudo o que a família tinha e esperar por um parente que mandasse uma carta de chamada.
Histórias que os garotos ouviam contar, mas que não eram bem assim. Aqui, um homem na lavoura ganhava 5 escudos por dia, mas lá ganhava pelos menos 3 dólares, que era uma fortuna, mais precisamente 72 escudos, quase quinze dias de trabalho daqui por um de lá.
O que contava – lembra-se Francisco dos seus tempos de menino – era o câmbio, não eram as pessoas. Por causa do câmbio, um homem valia 5 escudos em Portugal e 72 na América. E lá fora, fosse onde fosse, no Brasil, na Austrália, mesmo em Angola e em Moçambique, valia sempre mais do que em Portugal, onde, em certas épocas nem valia nada, porque não era preciso, valendo-se das trocas de produtos agrícolas para sobreviver.
Foi ainda há muito pouco tempo, que ele não é assim tão velho, recordando-se perfeitamente que não havia dinheiro, contavam-se os tostões, mas também não havia fome, que se tirava tudo da terra ou do mar. O problema maior era precisamente o contrário, o da fartura. Em anos de fartura ninguém conseguia vender nada na feira, com os negociantes a porem os preços de rastos.
Dinheiro nos bancos? Ninguém tinha. Ninguém punha dinheiro nos bancos, porque se contava que há muitos anos, no tempo da república, quem lá o colocou perdeu tudo.
Hoje é contrário – replicou Angelina. Todas as pessoas têm conta no banco, mas não têm dinheiro e num dia destes não têm que comer. A meio do mês já acabou o saldo, mas o banco dá-lhes crédito de meio mês, porque ganha com isso. Cobra-lhe juros usurários, 24 ou 25 por cento, mais comissões de crédito ou atraso de pagamento. É um fabuloso negócio: com a crise o banco central empresta-lhes à taxa zero e os bancos emprestam a 25. Portanto, meu querido Francisco, o endividamento das famílias interessa aos bancos, que ganham milhões com ele. Como ganham milhões com a dívida do estado, a quem também emprestam dinheiro que pedem a outros.
A folga é muito grande mas tem limites. E se o desemprego avança, os bancos perdem pelo menos esse meio mês que adiantaram, coisa pouca, porque já o ganharam antes, mas que multiplicado por muitos é muito. Mas não é isso que os preocupa: o que os preocupa é haver uma pessoa que deixa de dar lucro, que passa a ser um número zero, que é um inútil para a sociedade, pelo menos a partir do momento em que deixar de ter direito ao subsídio de desemprego.
As pessoas valem apenas em função do dinheiro que movimentam e das dividas que contraíam. Sem dinheiro e sem dividas, conduziriam o sistema financeiro que sempre foi generoso com elas ao mais profundo desastre.
Deu-se esta conversa de Angelina com Francisco Beirão no auge de uma crise por causa do orçamento do estado, que o chefe da oposição, o dr. Mário Meneses, chefe do PSD, ameaçava sabotar, como acusavam os adeptos do primeiro ministro Gustavo Lopes.
Os bancos começaram a mexer-se porque o crédito mal parado tinha subido vertiginosamente. Claro que eles cortaram o crédito aos desempregados, mal falharam a primeira prestação. Mas se o orçamento não fosse aprovado, se não houvesse medidas especiais no que toca ao subsídio de desemprego, se, de um momento para o outro se cortasse a avalanche de dinheiro que os operários largavam nos seus cofres, o tal negócio do cartão de crédito dava prejuízo.
Já noutro momento, alegando as mesmas dificuldades e usando o mesmo esquema mental, os banqueiros tinham extorquido do governo garantias pessoais de mais de 8 biliões, que lhe permitiram ir buscar dinheiro a outros bancos, a que eles começaram agora a chamar o mercado.
Agora isto não podia parar, sob pena de as mais respeitáveis instituições do país, que são, neste como noutro, os ditos bancos, verem prejudicadas as suas legítimas expectativas, aliás garantidas, de forma profusa e clara, nos sucessivos programas de governo.
As coisas estavam a ficar azedas, mas Francisco não as conseguia perceber com clareza, porque tudo era dito na televisão numa linguagem cifrada.
Para além dos banqueiros, toda a classe política, com exceção de alguns sequazes do chefe da oposição, até os presidentes da OCDE e da união tinham passado nas televisões a dizer que o orçamento tinha que ser aprovado sem que houvesse sequer notícia do que seria o mesmo nem de que medidas conteria.
Como é que se pode insistir na aprovação de um orçamento sem que o mesmo se vislumbre e sem que se conheça o que nele se contém? – perguntou Francisco Beirão.
O importante não é o que o orçamento contém – explicou Angelina. O importante é o que o orçamento autoriza. E neste momento o dinheiro acabou. É preciso que o parlamento autorize o governo a pedir mais. Seria um desastre para os bancos se o país deixasse de se endividar e se eles deixassem de fazer o negócio da dívida.
O primeiro ministro Gustavo Lopes tinha sido convencido a prestar aquelas garantias, todos aqueles biliões e a intervir em dois bancos, com o argumento de que se o fizesse e se lançasse alguns novos impostos para tapar o buraco, ficaria o problema resolvidos. Mas tudo o vento levou e o vórtice da divida não poderia ser parado sob pena de se instabilizar todo o sistema financeiro.
Se não há dinheiro a girar, os bancos perdem – explicava Angelina. Os lucros do negócios são lucros. Foram aplicados em produtos financeiros; não podem voltar ao circuito. O que alimenta os bancos é o fluxo de dinheiro emprestado ao estado e aos particulares; é aí que se faz lucro. E se esse fluxo parar de um dia para o outro os bancos têm prejuízo. Por isso mesmo, não pode parar o endividamento.
O desemprego de mais de 10 por cento da população tinha causado um enorme rombo nas contas bancárias e um enorme prejuízo aos bancos. Foram milhões que deixaram de girar e de criar riqueza, ao ponto de se poder dizer que os bancos perderam muito mais do que os próprios desempregados. Os mais pobres, que são aqueles de quem as pessoas têm mais pena, perderam pouco, apenas uns 400 ou 500 euros por mês, coisa insignificante, que nem merece reparo. Os bancos, esses perderam milhões, sofreram prejuízos enormes, daí resultando a mediana conclusão de que é mais justo e eficaz que o governo os apoie do que apoie essa mutidão de miseráveis que não tem onde cair morta.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mais um bocadinho de prosa

Passaram mais de dez anos sobre a fuga, mas em muito poucas noites Francisco Beirão conseguiu dormir sem o pesadelo das profecias de Angelina.
O que ela lhe dizia resumia-se em muito poucas linhas, todavia chocantes para quem, como ele, tinha tido um avô republicano e acreditava numa república que tinha a beleza dos bustos em que os seios lhe aparecem cobertos por um tecido transparente como deveria ser o estado.
Angelina insultava o busto como se a república estivesse inexoravelmente a transformar-se numa prostituta apropriada por uma multidão de proxenetas. Eram os do parlamento, eram os do governo, eram os dos tribunais, na primeira linha, porque são órgãos que deixaram de ser dela, para se tornarem exteriores a ela, aproveitando-a para si e para outros como se fosse uma desprotegida rameira.
A república está com cem anos. Não pode ser tratada como uma virgem. Temos que explorar a velha enquanto é tempo. Se não formos nós são outros. É como se fosse a filha de um amigo. Se um homem não come come outro; e o amigo sempre preferirá, se for verdadeiro amigo, que seja um amigo a comê-la. O mesmo é válido para a mulher do amigo, entenda-se. Sempre será preferível que ela embarque com um que é amigo do marido do que com um estranho, que vá contar tudo ao bairro. Ao menos o amigo do amigo, não diz nada. E isso é que é o essencial, porque o que magoa não é o ato mas o conhecimento dele.
Pragmática, Angelina falava de tudo e de todos, pausadamente.
Começou a construir a sua teoria quando os securitas começaram a encher os átrios dos ministérios, em substituição daqueles polícias que havia antigamente, gorduchos, barrigudos, com a farda apertada sobre a gordura e um cheiro a vinho tinto que lhes marcava as maçãs do rosto com um vermelho que nada tem a ver com a palidez dos novos seguranças.
Substituíram-nos por uns jovens, com fardas como as que se veem nos filmes, sem armas, quase todos com ar de quem perdeu a noite anterior, talvez sejam muitos deles porteiros de boate.
A verdade é que um polícia ganha uma miséria e um securitas não ganha mais; mas enchem-se os bolsos dos que os contratam como escravos e os vendem com alto lucro ao estado e às empresas públicas. Também os há nas privadas, pois há, porque os administradores precisam de ganhar algum.
Daqui passou Angelina para o trabalho temporário. Uma secretária contratada a uma empresa de trabalho temporário pode ganhar 1.000 euros por mês. Mas, na realidade, ela ganha só 500, ou até 400. Não é por acaso que a prostituição e a advocacia são as profissões mais antigas do mundo. As prostitutas não pagam impostos, mas recebem apenas 50% do que os clientes pagam às senhoras que põem os anúncios no Correio da Manhã e no Diário de Notícias. Se elas cobram 100 são 50 para  a patroa, se cobram 50, são 25 e se cobram 15, como agora se vê, levam para casa apenas 7,5, se trabalharem, porque se não,  ainda têm que fazer um bico ao taxista.
Maria Luisa, a Luisinha, foi apanhada pelo deputado Rogério Fernandes quando, ainda no tempo dos escudos, num dia sem paciência para participar no plenário, não havia nenhuma lei importante para votar,  ele pegou no jornal e ligou um daqueles números. Atendeu-o em lingerie, como constava do anúncio, pedindo-lhe cinco contos, com direito a oral, vaginal e segunda oportunidade.
Quando ele lhe segredou que trabalhava na Assembleia da República, contou-lhe ela todas as desgraças. Primeiro ficou órfã, tinha 18 anos e foi comida pelo padre, que lhe pediu para não dizer nada na aldeia, porque se alguém soubesse,  era o fim da carreira dela. Temente a deus, guardou o silêncio e destinou os dois contos que ele lhe deu a uma viagem para Lisboa, de comboio, quando ainda era barato, sobrando-lhe o dinheiro suficiente para se manter uma semana, três dia na Pensão Josefina, com águas quentes e frias,  e dois em casa de um namorado que arranjou ao fim do terceiro dia e que, tudo indicava, era pessoa de confiança.
Apresentou-a ao gerente do Nina, que era muito boa pessoa e já tinha ajudado muitas raparigas. Ainda o Chiado não tinha ardido e o senhor Manuel foi com ela, um dia depois da apresentação, comprar-lhe uns trapos, coisa própria para o trabalho, que era tudo com gente de posição, alguns dos quais acabaram em ministros.
Rogério Fernandes interessou-se pelo discurso. Quem eram, como funcionavam na cama, quanto pagavam, se gostavam de ir com mais de uma, mais um ror de perguntas de que ela já não se lembra.
Madura, madura demais, mas com uma grande experiência de vida – pensou Rogério, como se ela, passe o incesto, pudesse ser para ele uma mãe. Passada uma semana, a Luisinha era nomeada funcionária do grupo parlamentar.
Com uma experiência de vida como nenhuma outra das suas colegas tinha, pois eram todas meninas bem, que nunca comeram o pão que o diabo amassou, ensinou-lhes tudo quanto pode, sempre a desvalorizar os homens, relativamente aos quais as mulheres se deveriam organizar politicamente, sob pena de continuar a haver Luisinhas, violadas pelos padres ou pelos políticos, que são quase a mesma coisa, pregadores, que, num caso como noutro, não existem de não tiverem freguesia.
Ali, sustentava, subversivamente a D. Luisa, como passou a ser chamada, todas poderiam ter uma freguesia que era o próprio país, desde que fossem inteligentes, porque na realidade, como, passado alguns dias, todas segredavam entre si, aquele grupo de homens e mulheres a quem chamavam os eleitos, não passavam de uma pequena multidão de imbecis, cujo poder, em bom rigor, dependia delas.
Não foi necessário muito tempo para que Luisa se apercebesse de que o importante, verdadeiramente importante, era o partido, o qual se não dirigia diretamente aos deputados, passando tudo pelo staff, que é aquilo a que antes se chamava gabinete de apoio.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

II

Sentado no sofá, Francisco deixou cair o jornal sobre os joelhos e fez desfiar da memória toda este colagem de pensamentos e de telefonemas. Nunca Angelina lhe tinha aparecido tão verdadeira, tão real e tão sintomática na associação das suas palavras com a realidade que, ao mesmo tempo, desfilava, nos intervalos do zapping, logo a seguir ao 25 de Abril, quando em Portugal um negro não conseguiria ganhar sequer uma junta de freguesia. A América estava cheia de KKK e Angelina falava do inimaginável. Um preto na presidência da América é possível quando o capital quiser ou quando for necessário confiscar a poupança dos pobres, profetizava Angelina há mais de trinta anos
Lembras-te do que eu te disse, há muitos anos? Está tudo escrito e está tudo aí... Volta a ler o meu livro que te vai fazer bem. E guarda algum dinheiro que te vai fazer falta.
Angelina sempre funcionou por metáforas e por sinais. Bonitona, arguta, apetitosa, inspirava a um tempo paixão e medo. Francisco sonhou durante meses deitar-se com ela; mas quando chegava a hora H, ela recebia um telefonema, que sempre simulava ser de pessoa muito importante, fugindo com uma frase coloquial que ficou famosa entre a meia dúzia de pessoas que teve o prazer de privar com ela: a marquesa da Buraca vai ter que se retirar; interesses mais altos se levantam.
Correu todos os corredores do poder e os lugares mais estranhos que se possa imaginar. Para além de ter conhecido e privado com   três presidentes da república no ativo, conheceu um rol enorme de chefes de estado e de ministros, com quem sempre se fotografava, para dizer que os conhecia e que com eles privara.
Francisco era um amigo muito especial. Mas, apesar disso, nunca conseguiu saber tudo, nem sequer saber muito, da pessoa e da vida de Angelina, porque, tal como ela, cultivava o enigma do link entre os sonhos e as realidades. Pragmáticos, muito pragmáticos, eram-no apenas quando se encontravam na horizontal, alimentando um segredo de que nunca ninguém suspeitou sequer.
Durante anos, Angelina teve fama de lésbica, que ela, aliás, alimentava e justificava com o mesmo argumento com que, por sistema, se recusava a embarcar com homens mais velhos. Muito simples – e puxava sempre do bilhete de identidade – ela não sabia quem era o pai e não queria encontrá-lo em desejáveis circunstâncias, razão por que o evitava de todo. Quem tivesse nascido antes de 1940 (porque a mãe lhe confidenciara que o pai, quando o conheceu era muito jovem, deveria ter para aí uns 19 anos) não tinha nenhuma hipótese. Isso aconteceu no período mais importante da revolução dos cravos, em que privou com tudo o que era poder, deixando-se apalpar e, eventualmente, até beijar, mas sem nunca chegar à vias de facto, por causa desse trauma de infância.
Francisco tentou a chance. Porque era do mesmo ano, também de 1959, não havia argumentos contra. Passou por todos os testes e apaixonou-se por aquela mulher que tinha tanto de bela como de louca e que o chantageou, em todas as dimensões, para obter contactos e se ver promovida e conhecida.
Passava as segundas no Snob, as terças no D. Pedro V, as quartas no Procópio, alternando os demais dias entre estes três, de forma incerta e em consequência do que vinha à rede, propiciado pela agenda múltipla que, ao fim de três meses, ela própria já construíra com os conhecimentos dos jornais.
Andaram assim dois ou três anos. Depois ela desapareceu sem deixar rasto, telefonando-lhe porém, ao menos um vez por mês, todavia sem encontros reais; era como se ela tivesse arranjado um compromisso que incluísse um amante. Deixou-o, literalmente, na merda. Não por questões profissionais ou de negócios, mas porque, debaixo daquela frivolidade era uma mulher muito interessante, a que ele se habituara, como se ela lhe tivesse confiscado uma boa parte da alma, que, porém, insistia em ocupar com o tal telefonema, ao menos uma vez por mês.
Francisco chegou a pensar que ela poderia ser agente da CIA ou do KGB, tão estranhas eram algumas das suas atitudes. Mas não... Era apenas, ao que concluiu, uma mulher muito inteligente e muito ambiciosa, como, aliás, devem ser todas as mulheres, para que os homens as respeitem.
Passado todo este tempo, o regresso de Angelina suscitou-lhe um conjunto de recordações e agrediu-o com uma série de estímulos. Francisco saiu para ir tomar café. Pegou no automóvel e dirigiu-se à beira do rio , onde procurou um  botequim para beber um café e uma água, ficando-se a olhar a corrente e a rememorar o que Angelina lhe falara de politica nas últimas três décadas.
Voltou para casa, guardou o carro na garagem e passou pelo supermercado para comprar três cervejas, daquelas de um litro que, apesar de tudo são proporcionalmente mais baratas e quatro garrafas de litro de coca-cola. 3,55 € para as coca-colas e 3,72 € para as cervejas, ou seja um total de 7,27 €.
  Acabara de perder sete votos. Quando chegou a casa sentou-se à mesa e retirou do bolso os papelinhos  que encontrou de tudo o que pagou nos últimos dias com com o  cartão multibanco: combustível, 58,78 €;  almoço com os garotos, 66,55 €; portagens, 4,35+4,35+11,25+11,25= 31,20 €. Total: 7,27+66,55+31,20=105,45 €.  Afinal não eram sete mas 145 votos, quase 146.
  Sentiu uma terrível amargura, não pelo valor da perda mas pelo murro que o novo sistema lhe dava nas suas convicções, mas, ao mesmo tempo uma compensatória alegria derivada do facto de ser um dos raros cidadãos – não haveria mais de cinco em Portugal – a conhecer em primeira mão as regras do que seria o  novo regime político e o plano para a sua entrada em vigor.
  Vai ser só no ano que vem, num outro 25 de Abril, com uma nova geração de militares, segredara Angelina. Até lá tudo será preparado de forma a que se dê uma transição pacífica, sem turbulências, com uma grande sentido de responsabilidade e de Estado. De qualquer forma é uma enorme honra para nós poder protagonizar, em primeira mão,  o novo modelo do governo do futuro.
  Quem não tem dinheiro não tem vícios, sentenciou. E a democracia é, essencialmente, um vício, como se vê da simples observação do mundo. O sistema de um homem um voto, que originariamente era apenas para os homens e depois se alargou às mulheres sem mudar, porém de nome, em boa verdade, nunca funcionou, tendo sido sempre uma patranha. Por isso entendia Maria Angelina que ele se tornara em qualquer coisa de insustentável.
  No tempo em que os animais falavam – como diz Francisco – estas coisas eram, mais ou menos heréticas. Mas os animais deixaram de falar... E então tudo é possível desde que haja ousadia, porque esse sentimento antiquado da vergonha não se encontra já, sequer nos saldos.
  Olha Francisco, dizia-lhe ela, há uns meses, num telefonema de Nova Iorque; tu acreditas nos estruturados? tu acreditas nas opções? Tu acreditas nos cds? tu acreditas que são biliões em que o pessoal aposta, apenas por que lhe dizem para apostar, sem que haja nada de substrato por debaixo? Então se acreditas, vais também acreditar que é possível vender o céu e as estrelas e que nenhum governo o vai impedir enquanto a situação não for de tal modo grave que seja obrigado a fazê-lo. Aí, meu amigo, vais ver como mudam as coisas...
  Passaram quase trinta anos sobre a invenção de Angelina. Imaginava ela, depois de longos estudos comportamentais sobre o homem em ambiente eleitoral que a falta de qualidade dos decisores políticos se devia, essencialmente, ao cansaço dos eleitores e que, por isso mesmo, era sustentável a possibilidade de substituição da classe política, no seu conjunto, por um conjunto de máquinas em rede, sobre as quais os cidadãos pudessem interagir. Claro que a ideia parecia mesmo um absurdo; mas para Angelina era tão absurdo como a substituição das lavadeiras por máquinas de lavar. E ela explicava isso, cuidadosamente com exemplos, recorrendo a um conjunto de cassettes, perfeitamente classificadas e agrupadas por data e por assunto.
  Numa caixa vermelha estavam as do Partido Comunista; noutra com o vermelho mais suave, porém sem ser ainda cor de rosa, dos do Partido Socialista; numa terceira, que era amarelo torrado, as do Partido Popular Democrático e numa quarta, que era azul marinho, as do Centro Democrático Social.
  Tudo começou mesmo por ai.
  A politóloga portuguesa inventou nos anos 80 – era uma jovenzinha - um sistema alternativo ao da democracia tradicional mas não conseguiu sequer encontrar um editor que lhe publicasse o livro em que enunciou as linhas principais da sua teoria.  Xingou Francisco durante anos, para que ele  lhe apresentasse alguém que pudesse interessar-se pela obra, mas o jornalista nunca arriscou um simples contacto com nenhum dos editores das suas relações. Essa coisa de os votos deixarem de ser por pessoa para serem por cada escudo que a pessoa tivesse e de os votos de um poderem ser amanhã, porque o dinheiro muda de mãos, votos de outro, parecia uma coisa absolutamente impensável.

sábado, 2 de outubro de 2010

Um artigo com dados para romancear

O problema da (in)sustentabilidade do Estado não consegue fugir, por mais que alguns iluminados sustentem o contrário, a algumas das regras clássicas da economia e das finanças.
A adição ou a retirada do prefixo dependem, no essencial, de operações matemáticas, por mais que os políticos e os jornalistas insistam em demonstrar o contrário.
Uma velha regra, parafraseada em meia dúzia de aulas pelo saudoso Prof. Teixeira Ribeiro é a de que a despesa pública não deve realizar-se se não tiver cabimento num orçamento que, de forma rigorosa, a preveja e preveja a sua cobertura pelas receitas do Estado.
As receitas clássicas do Estado decorrem dos impostos e das taxas, com que se alimenta o sistema fiscal, as quais são, naturalmente, influenciadas, pela evolução da economia real e pelo seu dinamismo.
Quando o Estado é um plenamente soberano (como acontecia com Portugal antes da integração no grupo do Euro) pode aumentar as suas receitas por via da emissão de moeda, mesmo que as emissões massivas possam implicar a sua desvalorização.
Quando, como agora acontece com Portugal, um país não pode, pela natureza das coisas, desenvolver políticas monetárias próprias, a sua (in)sustentabilidade depende da capacidade para gerar um equilíbrio, ainda que de médio e longo prazo entre as receitas e as despesas.
Os Estados podem, como os particulares, recorrer ao crédito. Mas é por demais óbvio que tal recurso, por maior que seja a solidariedade dos seus parceiros, depende da credibilidade das suas políticas e, desde logo, da demonstração da sua capacidade para solver os seus compromissos.
A elevação das taxas de juros é a menos grave das consequências do desequilíbrio das contas públicas, de forma semelhante ao que acontece com as empresas. Gravíssimo é, porém, qualquer quadro em que o credor preveja, em resultado da mera observação da economia real, que o devedor nunca conseguirá pagar aquilo que deve.
Uma observação minimamente atenta da realidade portuguesa conduz-nos inevitavelmente à conclusão da inviabilidade do Estado português, se os governantes insistirem em prosseguir uma política que conduz a um agravamento sistemático e progressivo da dívida pública.
Hoje,  2 de Outubro de 2010, ainda não tinha amanhecido, às 5h57, a divida bruta das administrações públicas gerada nesse dia era de cerca de 97 milhões de euros e a receita fiscal de apenas 24 milhões, crescendo uma e outra a ritmos vertiginosos. Passadas cinco horas, quando acordei, às 10 da manhã,  a divida acumulada ultrapassava dos 247 milhões e a receita fiscal era de pouco mais de 61 milhões
Às mesmas horas, a despesa pública (do dia) com a saúde e a educação (somadas) não ultrapassavam  os 12 milhões de euros e os 27 milhões, respetivamente.
O stock da dívida direta do Estado, que em 1980 era de apenas 2,3 mil milhões de euros subiu, em final de 2009 para 132 mil milhões, passando de 30% do PIB para 81% .
As receitas fiscais, que representavam apenas 9,8% do PIB em 1974, subiram para 12,2% em 1980 e para 20,3% em 2007.
Em 1980,  as receitas fiscais representavam 12,2%  e a divida direta do Estado representava 30% do PIB. Em 2007,  as receitas fiscais representavam 20,3% do PIB, a mesma dívida representava 69,2%.
Uma análise, mesmo que superficial, das contas públicas demonstra que o Estado não tem capacidade, sequer, para pagar os juros e que uma boa parte dos empréstimos contraídos são amortizados não com receitas  obtidas pela administração mas com novos empréstimos que, capitalizando os juros não pagos agravam o montante da dívida e dos seus custos, tornando-os insustentáveis.
Em 31 de Agosto de 2001, a dívida pública era de   69.293  milhões de euros. Em 31 de Agosto de 2010, era de   146.999 milhões de euros, ou seja, mais de o dobro.
No dia 2 de Outubro de 2010, às 5 da manhã, a população portuguesa residente no Continente e nas Ilhas era de 10.664.134 habitantes. Não se sabe qual era o montante da dívida pública a essa hora. Mas se tomarmos em consideração os valores de 31 de Agosto de 2010, cabe a cada português um calote de 13.784,43 €.
Este número não seria dramático, mesmo que para a divisão tenham contado velhos, desempregados  e crianças, incluindo as que nasceram até às 5 da manhã daquele dia. Se todos os portugueses ganhassem um salário mínimo teriam que trabalhar (todos) pouco mais de 29 meses para pagar a dívida pública. Mas Portugal tem cerca de 590 mil desempregados e a população ativa não ultrapassa os 5.587.000 cidadãos, pelo que a dívida pública per capita ( considerando estes ativos) seria de 26.309,49 €, correspondente a  quase 55 meses e meio de salário mínimo.
Um Estado que deixa chegar a situação das suas finanças a este ponto não pode, naturalmente, merecer a consideração dos credores e caminha a passos largos para o abismo.
Não se conhecem os números dos últimos seis meses, mas as notícias que vem sendo publicadas indicam que a mesma se degradou de forma grave, tendo afetado de forma grave o crédito do Estado, que tem dificuldade em encontrar recursos nos mercados e afetando, de forma quiçá mais grave, o crédito do sistema financeiro nacional, cujos recursos são alocados em boa parte ao financiamento da dívida pública.
O Estado está à beira da insolvência, essencialmente, porque não consegue gerar receitas que lhe permitam solver os custos do seu funcionamento, entre os quais os custos financeiros da dívida.
Mas, mais grave do que isso, é o facto de as perspetivas que se anunciam poderem bloquear a economia, com consequências gravíssimas na redução das receitas fiscais e no agravamento da falta de competitividade das empresas portuguesas.
Este desequilíbrio das contas públicas reduz, pela sua própria natureza, os recursos públicos necessários ao cofinanciamento de projetos apoiados pela União Europeia, à perda das comparticipações comunitárias e à eliminação de vetores essenciais à criação de condições de competitividade das empresas portuguesas.
Mas tem outra implicação bem mais grave, que reside na transformação da dívida pública num negócio especulativo que anula a função creditícia dos bancos por relação às empresas privadas, impedindo o seu funcionamento por falta de recursos e contribuindo para a destruição do capital industrial acumulado no país e que pode, a breve prazo, ser condenado à transformação em montanhas de sucata.
Por isso mesmo me parece que a solução não é resolúvel com paliativos, ou seja sem medidas drásticas que anulem toda a despesa pública inútil ou simplesmente dispensável e moldando o Estado à dimensão dos seus recursos, por aplicação de regras aplicáveis às situações de insolvência, que o próprio Estado até já definiu para regular a situação das empresas em situação difícil.
Claro que é dramático ter que despedir funcionários públicos. Mas não é dramático despedir empregados de empresas privadas? Qual a razão que justifica que a uns seja garantido o emprego, que não tem viabilidade e os outros são condenados à perda do trabalho, compensada por uns magros meses de subsídio de desemprego.
Quanto mais tarde forem tomadas as medidas necessárias, mais dramática será a situação, podendo, inclusivamente fazer-se perigar a própria existência do regime democrático.
Há centenas de serviços públicos, que consomem milhões de euros e  que podem, pura e simplesmente, ser encerrados sem que daí venha algum mal ao mundo. Há milhões de euros de subsídios que podem ser cortados sem que o país perca alguma coisa, com a vantagem de, com isso, se reforçar a responsabilidade da sociedade civil. Há milhões de euros que se despendem com consultores e que podem ser poupados, se se aproveitarem os recursos de que o Estado dispõe. Só para dar um exemplo, não se justifica que todos os serviços públicos tenham juristas e que o Estado gaste por ano mais de 500 milhões de euros por ano com advogados, quando a defesa dos seus interesses podia e devia ser feita pelos seus próprios quadros técnicos.
Meter a cabeça na areia poderá servir agora para proteger as clientelas partidárias; mas é um risco demasiado elevado, porque pode destruir a função dos próprios partidos por via de um autismo insensato que parece que os afeta a todos.
Falando todos -  aliás com unanimidade e forte verve, de patriotismo -  porque não se entendem todos no sentido de devolver a dignidade à política, renunciando aos privilégios com que a eles próprios se prendaram  e atribuindo-se a si próprios o salário mínimo nacional, no respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos a quem fixaram o valor vigente?
A classe política anda a gerar, há anos, os fundamentos da sua auto-destruição por duas vias. Em primeiro lugar pela falta de ideias e pela falta de capacidade para criar soluções, que compra, umas e outras a em concursos públicos ou consultorias privadas, que depois assume como suas. Em segundo lugar, pela adoção de soluções que são desastrosas, de um ponto de vista financeiro e que conduzirão, inevitavelmente, ao colapso cujas responsabilidades lhe haverão de ser imputadas.
Os problemas agravar-se-ão, de forma gravíssima, no momento em que a capacidade de financiamento do país não for suficiente para comprar e pagar os alimentos de que dependemos para viver.
A ganância do Estado conduziu à concentração da distribuição em meia dúzia de grupos económicos, como via adequada a controlar a tributação do consumo. Este fenómeno inviabilizou a pequena agricultura de subsistência e destruir a habilidade da terra para produzir alimentos no curto prazo, para além de ter, literalmente, apagado os conhecimentos acumulados, durante séculos, em matéria de agricultura e pecuária.
Num quadro de rotura dos fornecimentos de alimentos, que pode verificar-se quando não tivermos dinheiro nem crédito para comprar ao estrangeiro o que produzimos, não será viável repor em funcionamento uma agricultura e uma pecuária de subsistência, pelo que a fome será inevitável.
Os mais novos e os mais aventurosos sairão do país, como sempre fizeram os portugueses em tempos de fome. Mas os velhos e os que o não puderem fazer passarão muito mal.
Tudo se não houver tino e não se inverterem os caminhos traçados pelos políticos e pelos banqueiros, para quem a dívida pública se transformou numa mina, antes de se transformar num projeto de  poder.