quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Mais um bocadinho de prosa

Passaram mais de dez anos sobre a fuga, mas em muito poucas noites Francisco Beirão conseguiu dormir sem o pesadelo das profecias de Angelina.
O que ela lhe dizia resumia-se em muito poucas linhas, todavia chocantes para quem, como ele, tinha tido um avô republicano e acreditava numa república que tinha a beleza dos bustos em que os seios lhe aparecem cobertos por um tecido transparente como deveria ser o estado.
Angelina insultava o busto como se a república estivesse inexoravelmente a transformar-se numa prostituta apropriada por uma multidão de proxenetas. Eram os do parlamento, eram os do governo, eram os dos tribunais, na primeira linha, porque são órgãos que deixaram de ser dela, para se tornarem exteriores a ela, aproveitando-a para si e para outros como se fosse uma desprotegida rameira.
A república está com cem anos. Não pode ser tratada como uma virgem. Temos que explorar a velha enquanto é tempo. Se não formos nós são outros. É como se fosse a filha de um amigo. Se um homem não come come outro; e o amigo sempre preferirá, se for verdadeiro amigo, que seja um amigo a comê-la. O mesmo é válido para a mulher do amigo, entenda-se. Sempre será preferível que ela embarque com um que é amigo do marido do que com um estranho, que vá contar tudo ao bairro. Ao menos o amigo do amigo, não diz nada. E isso é que é o essencial, porque o que magoa não é o ato mas o conhecimento dele.
Pragmática, Angelina falava de tudo e de todos, pausadamente.
Começou a construir a sua teoria quando os securitas começaram a encher os átrios dos ministérios, em substituição daqueles polícias que havia antigamente, gorduchos, barrigudos, com a farda apertada sobre a gordura e um cheiro a vinho tinto que lhes marcava as maçãs do rosto com um vermelho que nada tem a ver com a palidez dos novos seguranças.
Substituíram-nos por uns jovens, com fardas como as que se veem nos filmes, sem armas, quase todos com ar de quem perdeu a noite anterior, talvez sejam muitos deles porteiros de boate.
A verdade é que um polícia ganha uma miséria e um securitas não ganha mais; mas enchem-se os bolsos dos que os contratam como escravos e os vendem com alto lucro ao estado e às empresas públicas. Também os há nas privadas, pois há, porque os administradores precisam de ganhar algum.
Daqui passou Angelina para o trabalho temporário. Uma secretária contratada a uma empresa de trabalho temporário pode ganhar 1.000 euros por mês. Mas, na realidade, ela ganha só 500, ou até 400. Não é por acaso que a prostituição e a advocacia são as profissões mais antigas do mundo. As prostitutas não pagam impostos, mas recebem apenas 50% do que os clientes pagam às senhoras que põem os anúncios no Correio da Manhã e no Diário de Notícias. Se elas cobram 100 são 50 para  a patroa, se cobram 50, são 25 e se cobram 15, como agora se vê, levam para casa apenas 7,5, se trabalharem, porque se não,  ainda têm que fazer um bico ao taxista.
Maria Luisa, a Luisinha, foi apanhada pelo deputado Rogério Fernandes quando, ainda no tempo dos escudos, num dia sem paciência para participar no plenário, não havia nenhuma lei importante para votar,  ele pegou no jornal e ligou um daqueles números. Atendeu-o em lingerie, como constava do anúncio, pedindo-lhe cinco contos, com direito a oral, vaginal e segunda oportunidade.
Quando ele lhe segredou que trabalhava na Assembleia da República, contou-lhe ela todas as desgraças. Primeiro ficou órfã, tinha 18 anos e foi comida pelo padre, que lhe pediu para não dizer nada na aldeia, porque se alguém soubesse,  era o fim da carreira dela. Temente a deus, guardou o silêncio e destinou os dois contos que ele lhe deu a uma viagem para Lisboa, de comboio, quando ainda era barato, sobrando-lhe o dinheiro suficiente para se manter uma semana, três dia na Pensão Josefina, com águas quentes e frias,  e dois em casa de um namorado que arranjou ao fim do terceiro dia e que, tudo indicava, era pessoa de confiança.
Apresentou-a ao gerente do Nina, que era muito boa pessoa e já tinha ajudado muitas raparigas. Ainda o Chiado não tinha ardido e o senhor Manuel foi com ela, um dia depois da apresentação, comprar-lhe uns trapos, coisa própria para o trabalho, que era tudo com gente de posição, alguns dos quais acabaram em ministros.
Rogério Fernandes interessou-se pelo discurso. Quem eram, como funcionavam na cama, quanto pagavam, se gostavam de ir com mais de uma, mais um ror de perguntas de que ela já não se lembra.
Madura, madura demais, mas com uma grande experiência de vida – pensou Rogério, como se ela, passe o incesto, pudesse ser para ele uma mãe. Passada uma semana, a Luisinha era nomeada funcionária do grupo parlamentar.
Com uma experiência de vida como nenhuma outra das suas colegas tinha, pois eram todas meninas bem, que nunca comeram o pão que o diabo amassou, ensinou-lhes tudo quanto pode, sempre a desvalorizar os homens, relativamente aos quais as mulheres se deveriam organizar politicamente, sob pena de continuar a haver Luisinhas, violadas pelos padres ou pelos políticos, que são quase a mesma coisa, pregadores, que, num caso como noutro, não existem de não tiverem freguesia.
Ali, sustentava, subversivamente a D. Luisa, como passou a ser chamada, todas poderiam ter uma freguesia que era o próprio país, desde que fossem inteligentes, porque na realidade, como, passado alguns dias, todas segredavam entre si, aquele grupo de homens e mulheres a quem chamavam os eleitos, não passavam de uma pequena multidão de imbecis, cujo poder, em bom rigor, dependia delas.
Não foi necessário muito tempo para que Luisa se apercebesse de que o importante, verdadeiramente importante, era o partido, o qual se não dirigia diretamente aos deputados, passando tudo pelo staff, que é aquilo a que antes se chamava gabinete de apoio.

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