sexta-feira, 8 de outubro de 2010

II

Sentado no sofá, Francisco deixou cair o jornal sobre os joelhos e fez desfiar da memória toda este colagem de pensamentos e de telefonemas. Nunca Angelina lhe tinha aparecido tão verdadeira, tão real e tão sintomática na associação das suas palavras com a realidade que, ao mesmo tempo, desfilava, nos intervalos do zapping, logo a seguir ao 25 de Abril, quando em Portugal um negro não conseguiria ganhar sequer uma junta de freguesia. A América estava cheia de KKK e Angelina falava do inimaginável. Um preto na presidência da América é possível quando o capital quiser ou quando for necessário confiscar a poupança dos pobres, profetizava Angelina há mais de trinta anos
Lembras-te do que eu te disse, há muitos anos? Está tudo escrito e está tudo aí... Volta a ler o meu livro que te vai fazer bem. E guarda algum dinheiro que te vai fazer falta.
Angelina sempre funcionou por metáforas e por sinais. Bonitona, arguta, apetitosa, inspirava a um tempo paixão e medo. Francisco sonhou durante meses deitar-se com ela; mas quando chegava a hora H, ela recebia um telefonema, que sempre simulava ser de pessoa muito importante, fugindo com uma frase coloquial que ficou famosa entre a meia dúzia de pessoas que teve o prazer de privar com ela: a marquesa da Buraca vai ter que se retirar; interesses mais altos se levantam.
Correu todos os corredores do poder e os lugares mais estranhos que se possa imaginar. Para além de ter conhecido e privado com   três presidentes da república no ativo, conheceu um rol enorme de chefes de estado e de ministros, com quem sempre se fotografava, para dizer que os conhecia e que com eles privara.
Francisco era um amigo muito especial. Mas, apesar disso, nunca conseguiu saber tudo, nem sequer saber muito, da pessoa e da vida de Angelina, porque, tal como ela, cultivava o enigma do link entre os sonhos e as realidades. Pragmáticos, muito pragmáticos, eram-no apenas quando se encontravam na horizontal, alimentando um segredo de que nunca ninguém suspeitou sequer.
Durante anos, Angelina teve fama de lésbica, que ela, aliás, alimentava e justificava com o mesmo argumento com que, por sistema, se recusava a embarcar com homens mais velhos. Muito simples – e puxava sempre do bilhete de identidade – ela não sabia quem era o pai e não queria encontrá-lo em desejáveis circunstâncias, razão por que o evitava de todo. Quem tivesse nascido antes de 1940 (porque a mãe lhe confidenciara que o pai, quando o conheceu era muito jovem, deveria ter para aí uns 19 anos) não tinha nenhuma hipótese. Isso aconteceu no período mais importante da revolução dos cravos, em que privou com tudo o que era poder, deixando-se apalpar e, eventualmente, até beijar, mas sem nunca chegar à vias de facto, por causa desse trauma de infância.
Francisco tentou a chance. Porque era do mesmo ano, também de 1959, não havia argumentos contra. Passou por todos os testes e apaixonou-se por aquela mulher que tinha tanto de bela como de louca e que o chantageou, em todas as dimensões, para obter contactos e se ver promovida e conhecida.
Passava as segundas no Snob, as terças no D. Pedro V, as quartas no Procópio, alternando os demais dias entre estes três, de forma incerta e em consequência do que vinha à rede, propiciado pela agenda múltipla que, ao fim de três meses, ela própria já construíra com os conhecimentos dos jornais.
Andaram assim dois ou três anos. Depois ela desapareceu sem deixar rasto, telefonando-lhe porém, ao menos um vez por mês, todavia sem encontros reais; era como se ela tivesse arranjado um compromisso que incluísse um amante. Deixou-o, literalmente, na merda. Não por questões profissionais ou de negócios, mas porque, debaixo daquela frivolidade era uma mulher muito interessante, a que ele se habituara, como se ela lhe tivesse confiscado uma boa parte da alma, que, porém, insistia em ocupar com o tal telefonema, ao menos uma vez por mês.
Francisco chegou a pensar que ela poderia ser agente da CIA ou do KGB, tão estranhas eram algumas das suas atitudes. Mas não... Era apenas, ao que concluiu, uma mulher muito inteligente e muito ambiciosa, como, aliás, devem ser todas as mulheres, para que os homens as respeitem.
Passado todo este tempo, o regresso de Angelina suscitou-lhe um conjunto de recordações e agrediu-o com uma série de estímulos. Francisco saiu para ir tomar café. Pegou no automóvel e dirigiu-se à beira do rio , onde procurou um  botequim para beber um café e uma água, ficando-se a olhar a corrente e a rememorar o que Angelina lhe falara de politica nas últimas três décadas.
Voltou para casa, guardou o carro na garagem e passou pelo supermercado para comprar três cervejas, daquelas de um litro que, apesar de tudo são proporcionalmente mais baratas e quatro garrafas de litro de coca-cola. 3,55 € para as coca-colas e 3,72 € para as cervejas, ou seja um total de 7,27 €.
  Acabara de perder sete votos. Quando chegou a casa sentou-se à mesa e retirou do bolso os papelinhos  que encontrou de tudo o que pagou nos últimos dias com com o  cartão multibanco: combustível, 58,78 €;  almoço com os garotos, 66,55 €; portagens, 4,35+4,35+11,25+11,25= 31,20 €. Total: 7,27+66,55+31,20=105,45 €.  Afinal não eram sete mas 145 votos, quase 146.
  Sentiu uma terrível amargura, não pelo valor da perda mas pelo murro que o novo sistema lhe dava nas suas convicções, mas, ao mesmo tempo uma compensatória alegria derivada do facto de ser um dos raros cidadãos – não haveria mais de cinco em Portugal – a conhecer em primeira mão as regras do que seria o  novo regime político e o plano para a sua entrada em vigor.
  Vai ser só no ano que vem, num outro 25 de Abril, com uma nova geração de militares, segredara Angelina. Até lá tudo será preparado de forma a que se dê uma transição pacífica, sem turbulências, com uma grande sentido de responsabilidade e de Estado. De qualquer forma é uma enorme honra para nós poder protagonizar, em primeira mão,  o novo modelo do governo do futuro.
  Quem não tem dinheiro não tem vícios, sentenciou. E a democracia é, essencialmente, um vício, como se vê da simples observação do mundo. O sistema de um homem um voto, que originariamente era apenas para os homens e depois se alargou às mulheres sem mudar, porém de nome, em boa verdade, nunca funcionou, tendo sido sempre uma patranha. Por isso entendia Maria Angelina que ele se tornara em qualquer coisa de insustentável.
  No tempo em que os animais falavam – como diz Francisco – estas coisas eram, mais ou menos heréticas. Mas os animais deixaram de falar... E então tudo é possível desde que haja ousadia, porque esse sentimento antiquado da vergonha não se encontra já, sequer nos saldos.
  Olha Francisco, dizia-lhe ela, há uns meses, num telefonema de Nova Iorque; tu acreditas nos estruturados? tu acreditas nas opções? Tu acreditas nos cds? tu acreditas que são biliões em que o pessoal aposta, apenas por que lhe dizem para apostar, sem que haja nada de substrato por debaixo? Então se acreditas, vais também acreditar que é possível vender o céu e as estrelas e que nenhum governo o vai impedir enquanto a situação não for de tal modo grave que seja obrigado a fazê-lo. Aí, meu amigo, vais ver como mudam as coisas...
  Passaram quase trinta anos sobre a invenção de Angelina. Imaginava ela, depois de longos estudos comportamentais sobre o homem em ambiente eleitoral que a falta de qualidade dos decisores políticos se devia, essencialmente, ao cansaço dos eleitores e que, por isso mesmo, era sustentável a possibilidade de substituição da classe política, no seu conjunto, por um conjunto de máquinas em rede, sobre as quais os cidadãos pudessem interagir. Claro que a ideia parecia mesmo um absurdo; mas para Angelina era tão absurdo como a substituição das lavadeiras por máquinas de lavar. E ela explicava isso, cuidadosamente com exemplos, recorrendo a um conjunto de cassettes, perfeitamente classificadas e agrupadas por data e por assunto.
  Numa caixa vermelha estavam as do Partido Comunista; noutra com o vermelho mais suave, porém sem ser ainda cor de rosa, dos do Partido Socialista; numa terceira, que era amarelo torrado, as do Partido Popular Democrático e numa quarta, que era azul marinho, as do Centro Democrático Social.
  Tudo começou mesmo por ai.
  A politóloga portuguesa inventou nos anos 80 – era uma jovenzinha - um sistema alternativo ao da democracia tradicional mas não conseguiu sequer encontrar um editor que lhe publicasse o livro em que enunciou as linhas principais da sua teoria.  Xingou Francisco durante anos, para que ele  lhe apresentasse alguém que pudesse interessar-se pela obra, mas o jornalista nunca arriscou um simples contacto com nenhum dos editores das suas relações. Essa coisa de os votos deixarem de ser por pessoa para serem por cada escudo que a pessoa tivesse e de os votos de um poderem ser amanhã, porque o dinheiro muda de mãos, votos de outro, parecia uma coisa absolutamente impensável.

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