sábado, 16 de outubro de 2010

O orçamento

O primeiro projeto desenvolvido no âmbito da atividade da SIBS foi a criação e o lançamento de uma rede partilhada de ATMs (Automatic Teller Machines), a rede caixa automático multibanco, a qual veio a iniciar o seu funcionamento em Setembro de 1985, com a instalação de 12 terminais nas cidades de Lisboa e Porto.
Dez anos após a sua fundação, a rede já era constituída por 3.745 equipamentos, colocando agora à disposição dos clientes dos bancos cerca de 11.440 Caixas Multibanco, nos quais se  realizavam em média de 63 milhões de operações por mês.
A rede passou a oferecer uma gama vastíssima de serviços, desde publicidade a carregamento de telemóveis, pagamento de impostos e taxas dos tribunais, pagamento da água e luz e transferências de conta para conta.
Deixou de ser necessário andar com o dinheiro no bolso e as pessoas começaram a levantar só o estritamente necessário para as bicas, para o tabaco e para as putas a quem, por razões que não são ainda conhecidas, não foram fornecidos terminais de multibanco, com devia ser permitido também aos mendigos que, coitados, foram muito prejudicados pelo sistema, incluindo-se neles, naturalmente, essa nova classe de trabalhadores, que é a dos arrumadores de automóveis, a quem, apesar do esforço e da dignidade da função, numa cidade em que é tão difícil estacionar, ainda ninguém reconheceu um estatuto de decência, continuando todos a trata-los como mendicantes, porque, na falta da maquininha se veem obrigados a estender a mão.
O último encontro de Angelina com Francisco Beirão ocorreu, fugazmente, no início de 2010. Foi uma  sabatina de dúvidas, que acabou ainda com mais dúvidas.  Foi neste encontro que ela lhe contou tudo isso sobre as máquinas multibanco, sem dizer, porém, diretamente, ao que queria chegar.
Francisco Beirão ia preparado para discutir com Angelina. Tinha fixado, quase decorado, o que lera nos jornais nos últimos tempos.
O problema, Francisco, não é o orçamento – disse-lhe ela. O problema é o défice. Vai chegar num instante a valores inimagináveis. E Portugal já não é o que era. Está muito pior do que no tempo de D. Carlos. Os adiantamentos do estado eram feitos apenas à casa real. Agora são feitos a tudo o que é  público, desde empresas completamente falidas até institutos e confrarias que  sugam diariamente o crédito público. E o estado já nem as melhores estradas tem, vendeu os melhores edifícios, transformou em papel tudo o que era valioso.
A república ergueu-se com o  confisco dos bens da igreja; mas até uma boa parte deles já foi vendida. E a florestas, que constituíam boa parte da riqueza nacional, arderam ou estão tão maltratadas que são precisos milhões para lhes recuperar o valor.
Mas há o mar – replicou Francisco Beirão, como se lhe quisesse dizer que o país não estava assim tão falido como ela referia. E temos o sol e o ar, que é um dos menos poluídos da Europa.
O mar já não é português; essa é outra grande mentira. O mar é da união e é ela quem administra os seus recursos. Já lá vão os tempos em que o país podia matar a fome com a sardinha e o peixe agulha que se pescava na costa e que chegava a todo o interior. Quando a fome voltar, não é possível voltar ao mar, que não é nosso, porque dele não podemos retirar o peixe, mesmo em tempo de aflição. Aliás, já nem temos barcos, porque os queimaram, com o dinheiro dos novos donos. É certo que temos a terra, mas ela está inculta e já não há quem a saiba trabalhar. Em menos de trinta anos o país perdeu a memória, como se essa multidão de analfabetos que antes sabia cultivar batatas e feijões tivesse necessidade de deletar todo o conhecimento para ocupar o espaço com o que lhe foi servido  em ações de formação das quais ganharam apenas as empresas formadoras.
Todo esse novo conhecimento, que custou milhões ao país vale zero. Tanto como valem os programas informáticos comprados há 30 anos sem direito a upgrade.
Já ninguém trabalha em ms-dos e isto é como se fosse um país ms-dos.
Isso não é verdade. Eu ainda sei plantar batatas. Deixam-se grelar, cortam-se as bocadinhos sem partir o grelo que há-de ficar em cada bocado, cava-se a terra, faz-se um rego onde se põe estrume, cobre o estrume com uma camada de terra, dispõem-se os bocados de batata com o grelo para cima e cobre-se tudo, no máximo com um palmo de terra. Tem que se fazer o rego direitinho, de preferência com uma linha em cada ponto da leira; e tirar a terra do rego sempre para o lado direito, não a utilizando toda na cobertura, de forma a que a que sobra constitua um combro mais elevado, sempre à direita do rego, de forma a que, à medida que se vai semeando, fique com outro combro à esquerda, servindo ambos como diques limitadores da água, quando se proceder á rega, depois da monda, lá para a primavera.
Francisco recordava os exercícios da infância, primeiro na brincadeira, como 6 ou 7 anos, seguindo o exemplo de pais e avós, com um pequeno sacho com que lhe ensinaram a fazer o seu batatal, uma coisa de 2 metros por dois, no sítio da Cabeleira, hoje um matagal irreconhecível. Depois, depois dos 12, a sério, como os homens e mulheres que o faziam por profissão e que ganhavam 5 escudos por dia, qualquer coisa como 2,5 cêntimos de euro ou menos de 20 cêntimos de dólar, no tempo em que 1 dólar valia 24 escudos.
Era o tempo em que se contava que a América tinha árvores de patacas, onde se dava um pontapé e o dinheiro caía, como se viesse do céu. O difícil era ir para lá. Era preciso vender terras, às vezes tudo o que a família tinha e esperar por um parente que mandasse uma carta de chamada.
Histórias que os garotos ouviam contar, mas que não eram bem assim. Aqui, um homem na lavoura ganhava 5 escudos por dia, mas lá ganhava pelos menos 3 dólares, que era uma fortuna, mais precisamente 72 escudos, quase quinze dias de trabalho daqui por um de lá.
O que contava – lembra-se Francisco dos seus tempos de menino – era o câmbio, não eram as pessoas. Por causa do câmbio, um homem valia 5 escudos em Portugal e 72 na América. E lá fora, fosse onde fosse, no Brasil, na Austrália, mesmo em Angola e em Moçambique, valia sempre mais do que em Portugal, onde, em certas épocas nem valia nada, porque não era preciso, valendo-se das trocas de produtos agrícolas para sobreviver.
Foi ainda há muito pouco tempo, que ele não é assim tão velho, recordando-se perfeitamente que não havia dinheiro, contavam-se os tostões, mas também não havia fome, que se tirava tudo da terra ou do mar. O problema maior era precisamente o contrário, o da fartura. Em anos de fartura ninguém conseguia vender nada na feira, com os negociantes a porem os preços de rastos.
Dinheiro nos bancos? Ninguém tinha. Ninguém punha dinheiro nos bancos, porque se contava que há muitos anos, no tempo da república, quem lá o colocou perdeu tudo.
Hoje é contrário – replicou Angelina. Todas as pessoas têm conta no banco, mas não têm dinheiro e num dia destes não têm que comer. A meio do mês já acabou o saldo, mas o banco dá-lhes crédito de meio mês, porque ganha com isso. Cobra-lhe juros usurários, 24 ou 25 por cento, mais comissões de crédito ou atraso de pagamento. É um fabuloso negócio: com a crise o banco central empresta-lhes à taxa zero e os bancos emprestam a 25. Portanto, meu querido Francisco, o endividamento das famílias interessa aos bancos, que ganham milhões com ele. Como ganham milhões com a dívida do estado, a quem também emprestam dinheiro que pedem a outros.
A folga é muito grande mas tem limites. E se o desemprego avança, os bancos perdem pelo menos esse meio mês que adiantaram, coisa pouca, porque já o ganharam antes, mas que multiplicado por muitos é muito. Mas não é isso que os preocupa: o que os preocupa é haver uma pessoa que deixa de dar lucro, que passa a ser um número zero, que é um inútil para a sociedade, pelo menos a partir do momento em que deixar de ter direito ao subsídio de desemprego.
As pessoas valem apenas em função do dinheiro que movimentam e das dividas que contraíam. Sem dinheiro e sem dividas, conduziriam o sistema financeiro que sempre foi generoso com elas ao mais profundo desastre.
Deu-se esta conversa de Angelina com Francisco Beirão no auge de uma crise por causa do orçamento do estado, que o chefe da oposição, o dr. Mário Meneses, chefe do PSD, ameaçava sabotar, como acusavam os adeptos do primeiro ministro Gustavo Lopes.
Os bancos começaram a mexer-se porque o crédito mal parado tinha subido vertiginosamente. Claro que eles cortaram o crédito aos desempregados, mal falharam a primeira prestação. Mas se o orçamento não fosse aprovado, se não houvesse medidas especiais no que toca ao subsídio de desemprego, se, de um momento para o outro se cortasse a avalanche de dinheiro que os operários largavam nos seus cofres, o tal negócio do cartão de crédito dava prejuízo.
Já noutro momento, alegando as mesmas dificuldades e usando o mesmo esquema mental, os banqueiros tinham extorquido do governo garantias pessoais de mais de 8 biliões, que lhe permitiram ir buscar dinheiro a outros bancos, a que eles começaram agora a chamar o mercado.
Agora isto não podia parar, sob pena de as mais respeitáveis instituições do país, que são, neste como noutro, os ditos bancos, verem prejudicadas as suas legítimas expectativas, aliás garantidas, de forma profusa e clara, nos sucessivos programas de governo.
As coisas estavam a ficar azedas, mas Francisco não as conseguia perceber com clareza, porque tudo era dito na televisão numa linguagem cifrada.
Para além dos banqueiros, toda a classe política, com exceção de alguns sequazes do chefe da oposição, até os presidentes da OCDE e da união tinham passado nas televisões a dizer que o orçamento tinha que ser aprovado sem que houvesse sequer notícia do que seria o mesmo nem de que medidas conteria.
Como é que se pode insistir na aprovação de um orçamento sem que o mesmo se vislumbre e sem que se conheça o que nele se contém? – perguntou Francisco Beirão.
O importante não é o que o orçamento contém – explicou Angelina. O importante é o que o orçamento autoriza. E neste momento o dinheiro acabou. É preciso que o parlamento autorize o governo a pedir mais. Seria um desastre para os bancos se o país deixasse de se endividar e se eles deixassem de fazer o negócio da dívida.
O primeiro ministro Gustavo Lopes tinha sido convencido a prestar aquelas garantias, todos aqueles biliões e a intervir em dois bancos, com o argumento de que se o fizesse e se lançasse alguns novos impostos para tapar o buraco, ficaria o problema resolvidos. Mas tudo o vento levou e o vórtice da divida não poderia ser parado sob pena de se instabilizar todo o sistema financeiro.
Se não há dinheiro a girar, os bancos perdem – explicava Angelina. Os lucros do negócios são lucros. Foram aplicados em produtos financeiros; não podem voltar ao circuito. O que alimenta os bancos é o fluxo de dinheiro emprestado ao estado e aos particulares; é aí que se faz lucro. E se esse fluxo parar de um dia para o outro os bancos têm prejuízo. Por isso mesmo, não pode parar o endividamento.
O desemprego de mais de 10 por cento da população tinha causado um enorme rombo nas contas bancárias e um enorme prejuízo aos bancos. Foram milhões que deixaram de girar e de criar riqueza, ao ponto de se poder dizer que os bancos perderam muito mais do que os próprios desempregados. Os mais pobres, que são aqueles de quem as pessoas têm mais pena, perderam pouco, apenas uns 400 ou 500 euros por mês, coisa insignificante, que nem merece reparo. Os bancos, esses perderam milhões, sofreram prejuízos enormes, daí resultando a mediana conclusão de que é mais justo e eficaz que o governo os apoie do que apoie essa mutidão de miseráveis que não tem onde cair morta.

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