domingo, 24 de outubro de 2010

O Dr. Manuel Gonçalves vai ao banco...

O país já está parado há algum tempo por manifesta falta de dinheiro. É como se houvesse um sorvedouro em local secreto, daqueles locais que nem os jornalistas descobrem onde estão.
Os bancos, tão indispensáveis ao bom andamento da economia, queixam-se, por via das pessoas que nos atendem ao balcão e que mostram na face um ar de pedintes, embora engravatados, como se vissem em nós os salvadores.
Precisamos todos de poupar, temos que poupar muito – diz o funcionário Jorge Luís, um alentejano à beira dos 60, que mostra, nos últimos tempos, uma tristeza no rosto que contrasta com a alegria permanente do louco que todos os dias se senta no rebate da porta do banco.
Era para se reformar agora, pois tem aqueles tempos do ultramar que se duplicam ou triplicam, ninguém percebe isso bem. Mas já diz que por este andar até pode não ter reforma.
Foi uma cena quando o dr. Manuel Gonçalves, que é um homem prudente, ali se deslocou para levantar 50.000 euros em dinheiro.
Cumprindo as instruções, procurou sondá-lo sobre o destino da massa, ao que Gonçalves respondeu de imediato e sem meias palavras. Isto não está seguro, tenho que ter algum dinheiro em casa.
Mas o dinheiro em casa não rende nada. – ripostou o outro.
No banco também não rende nada. Ainda pagamos para ter o dinheiro no banco. Vocês guardam-nos, teoricamente ele está seguro, mas nenhuma garantia temos de que nos devolvem a massa quando nós quisermos. Um depósito é uma espécie de entrega ao confisco, se quisermos movimentar o nosso dinheiro na hora. A ideia que nos transmitem é a de que o dinheiro deixa de ser nosso; e por isso criam todas as dificuldades, como agora você está a criar. Lembra-me a minha mãe quando eu era pequeno. Eu juntava o dinheiro das prendas e ela dava-me um vale quando eu tinha 100 escudos. Um dia eu queria comprar uma máquina fotográfica, que custava 400 escudos. Foi um martírio até que me devolvesse o dinheiro. E os argumentos eram os mesmos que vocês, os dos bancos, agora usam. É um desperdício, não deves comprar isso que não vai reproduzir o dinheiro,
Os bancos portam-se como se fossem os nossos pais quando éramos crianças, no tempo difícil da ditadura. Nos momentos mais críticos arrebanhavam o dinheiro dos miúdos a troco de uns vales com que nos consolavam e que, na realidade, não valiam nada, porque o dinheiro estava gasto, eles não o tinham e nenhum de nós tinha a coragem de lho pedir.
É essa  a sensação que temos agora: pomos o dinheiro no banco e o banco comporta-se, quando lho pedimos, como se o não tivesse.
Compreende-se que seja assim, sim senhor. Os bancos transformaram-se no sangue do governo e o governo é cada vez mais o corpo dos bancos, onde todos os ex-governantes, muitos dos quais nada fizeram na vida antes da política, começaram todos nas juventudes, acabam inexoravelmente, em lugares de topo, ninguém falando deles e criticando apenas aqueles que, por mérito próprio e por conhecerem bem as casas em que trabalharam, se viram guindados de antigos contínuos a administradores.
Sentada com Francisco Beirão na mesa do canto do Snob, longe daqueles jornalistas que ficam logo à entrada, Angelina vai continuando a lição, em que assenta as suas profecias.
Este bife, com uma carne maravilhosa, é,  provavelmente, de um qualquer circuito paralelo, que o trouxe das terras de Miranda para Lisboa. Não encontras esta carne nos supermercados, pela simples razão de que se produz em quantidade tão pequena que apenas se vende em pequenas boutiques como esta. Os outros, a populaça, come carne importada de todo o mundo. Não há nisso nenhum mal, a não ser o de que essa carne é comprada a crédito e, num dia destes não há dinheiro para a pagar. Quando isso acontecer ninguém come carne; mas pior do que isso, ninguém come mais nada do que tiver que ser importado, como se o grande merceeiro de que todos dependemos nos cortasse o crédito.
Mas, Angelina, ainda há muita gente com dinheiro, eu tenho o meu ordenado, muita gente tem o seu ordenado e todos os ordenados são pagos pelo banco e ficam no banco até que precisemos dele. Depois, quando eu vou ao supermercado, pago sempre a pronto; não faço como a minha mãe que, coitada, tinha que comprar fiado, para pagar no fim do mês.
Isso é verdade. Mas há outra verdade. O teu dinheiro não é o teu dinheiro; é do banco em que o depositas. E o banco empresta-o a quem calha, às empresas e ao governo, aos que querem jogar na bolsa, a toda a gente que compra casa e que só vai pagar, como combinado, durante 20 ou 30 anos. Estes são devedores seguros; talvez até sejam os únicos devedores seguros, pelo menos encontro tiverem empregos. Fazem das tripas coração e pagam, mas, se não pagarem, os bancos ficam-lhe com as casas, cujas hipotecas serviram de lastro a outros empréstimos, sempre de valores maiores, que eles contraíram. O problema maior está nos créditos sobre as empresas que vão à falência ou nos empréstimos feitos para comprar papel. Aí os bancos ficam a arder e começa a arder o teu dinheiro.
Depois – continua Angelina – vem o estado. Antigamente dizia-se que o estado somos todos nós, mas isso não é verdade. O estado são os funcionários públicos, os políticos e os amigos, uma espécie de grande empresa da qual todos dependemos e cujos prejuízos todos temos que pagar, como se fossemos sócios dessa empresa, ainda por cima sócios de responsabilidade limitada.
Se fosse uma sociedade anónima em que cada um tivesse que comprar uma ação à nascença ninguém nos vinha pedir nada, se os resultados fossem negativos a gestão desse para o torto. Mas não, se as coisas correm mal vão-nos ao bolso, ainda que eles possam consumir, esbanjar e distribuir pelos amigos o que bem entenderem, sem que alguém lhes vá à mão.
O estado deixou de ser um estado providência. É cada vez mais um provedor de negócios, um arranjador de oportunidades, um favorecedor dos que integram as elites sociais que o controlam.
Já assistimos a isto na União Soviética. A contradição entre o caráter planificado da economia e os interesses privados dos burocratas transformou-se na principal causa de insucesso da teoria marxista. A gestão burocrática implicou custos administrativos enormes e sacrifícios enormes para as grandes massas de produtores, sempre acossadas para aumentar a produtividade que se esvaia nos consumos do estado.
E o fim foi o que se viu: uma população na penúria, depois de ter dado tudo à revolução, com uma economia social insustentável, que acabou de forma fulminante quando o sistema burocrático caiu-
E o que vemos nós em Portugal? Lá voltaram ambos à conversa do orçamento, que continuava na ordem do dia.
Folheando estas páginas, chegamos à conclusão de que têm um peso enorme as obras de recuperação e remodelação de imóveis e os investimentos em informática, todos com verbas astronómicas.
Esse é o campo privilegiado dos boys e dos amigos, que conseguem ajustes diretos por quantias exorbitantes.
Não é de agora. Há anos que a execução orçamental é marcada pelo desperdício e pela de transparência dos contratos e das operações realizadas.
E Angelina ia dando exemplos, cada um deles mais escabroso do que o antecedente.
  Se analisarmos as aquisições de serviços na área da informática é de pôr as mãos na cabeça, tanto no que toca aos valores como à sobreposição de entidades atuando nas mesmas áreas.
O governo, prosseguia Angelina,  assenta a sua conceção de desenvolvimento no despesismo e no endividamento.
Tem a sua lógica, segundo eles: se não houver despesismo não há produto e se não houver produto não há impostos. Para que os impostos cresçam é importante que o despesismo seja o mais elevado possível, porque quanto mais elevado for maior é o lucro tributável e maior é a margem do défice, porque o défice que a União aceita é calculado em função do produto. Ou seja: se o estado influenciar o aumento do produto por via do despesismo, fica com maior margem para se endividar.
Mas isto tem um outro efeito. Se se gasta mais dinheiro do que aquele que se devia gastar com determinada obra, se se generaliza a prática de pagar preços mais altos do que os correntes no mercado, baixa a produtividade média mas, paradoxalmente, só para aqueles que não conseguem sentar-se na mesa do orçamento.
Passam as empresas a poder distinguir-se entre as que são beneficiadas pelos ajustes diretos, cujos donos andam de Mercedes, à semelhança dos donos do poder e as que não são e cujos donos andam em carros a cair aos bocados, porque não têm recursos nem crédito para comprar carros novos.
Depois, tens outra fraude que é a chamada formação profissional.
Uma palavra especial merecem as previsões relativas à formação profissional. Custa milhões e alimenta, sem nenhum resultado que possa ver-se, uns milhares de pessoas que mais não fazem do que contribuir para iludir as estatísticas do produto e do emprego. De que é que vale formar desempregados que partem da formação para a reforma, por não haver empregos? Claro que isso serve apenas para criar negócios para os amigos, suportados a peso de ouro pelo estado, num quadro de absoluta insustentabilidade. O estado não pode manter um sistema de ensino universal e, ao mesmo tempo, suportar um outro sistema de ensino paralelo, que custa quase tanto como o primeiro.
Mas mexer nisto é muito complicado, quase impossível sem uma revolução, como aconteceu na União Soviética, onde tudo caiu por causa dos mesmos vícios.
Mas tu achas que isto tem alguma coisa a ver com a União Soviética? – atalho Francisco Beirão. Isto é um país liberal.
É o método, meu amigo. O método e os vícios. Esses são os mesmos. O patrão do imaginário marxista é, tal como foi na União Soviética, o estado. E o drama reside nisso mesmo. Os ministros, os presidentes de câmara, os chefes dos institutos deixaram todos de se assumir como cidadãos eleitos para afivelarem a máscara do patrão capitalista a quem todos os demais devem obediência como se fossem seus operários, como se tivessem que trabalhar para eles ou de lhes pagar por tudo e por nada.
Só falta tributar o ar. Tudo o resto se tributa, a começar pela água. Claro que isto só é sustentável enquanto os bancos quiserem. O estado já nem sequer tem bancos ou tem um banco que não controla. Quem manda são os banqueiros, a quem toda a nação entrega o dinheiro e de quem o estado depende completamente. O edifício desabará quantos os bancos quiserem. Mais precisamente, quando os bancos deixarem de emprestar dinheiro ao governo.
Mas nós podíamos acabar com isso, se o governo fizesse contas à divida e estabelecesse um plano de pagamento. – avançou Beirão.
Mas como? Não vês quantos  milhares de pessoas que vivem da dívida? O que seria cortar radicalmente o endividamento e planificar pagar o passado?
Angelina concluía, mais uma vez, que isso só seria possível com uma revolução que, como todas as revoluções afastam a classe política existente para a substituir por outra.

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